Faz anos. Ganhei o livro “Código da Vida”, de Saulo Ramos. Li-o, mais por curiosidade que por outra razão. O livro é derramado, aberto, sem censura. Aos 78 anos, em 2007, curado de um câncer, e sabedor de uma doença coronária grave, Saulo Ramos resolve contar sua vida, do seu jeito, seguindo seus cânones. Escreve como advogado, mas sem esquecer a sua vertente literária – tipo contador de histórias- como integrante de duas academias de letras: a de Ribeirão Preto e a Santista. O livro já teve mais de 20 reimpressões e deve aumentar os lucros da editora Planeta, agora que Saulo Ramos morreu, em 29 de abril último, vítima do coração já esfalfado, em face de sua dura, brilhante e, quiçá, romanesca vida.
Nasceu em 1929, em Brodowski, cidade pequena, vizinha a Ribeirão Preto. Lá, já havia nascido outro brasileiro ilustre, Cândido Portinari. Portinariestá lá na página zero do seu livro com um retrato em crayon de Saulo, aos 24 anos. Ele manuscreve e proclama: “Para Saulo, que honrará nossa Brodowski, lembrança afetuosa do Portinari, 1953”. Não deu outra, Saulo foi um dos maiores paulistas dos últimos tempos.
Nasceu pobre, chegou a ser caminhoneiro, mas descobriu na advocacia o seu destino. Discípulo de Vicente Ráo, um grande advogado, resolveu fazer carreira solo. Foi quase tudo na advocacia e na política brasileira. Só não foi mais porque não o quis. Começou trabalhando com Mário Covas, depois foi ajudar Jânio Quadros a ser presidente por sete meses e chegou a ser ministro da Justiça de José Sarney, de quem era grande amigo. Tancredo morreu como todos sabem, antes da posse na presidência. Havia um impasse. Saulo comandou a equipe que solucionou o problema constitucional. O resto já é história.
O livro não é um exercício de modéstia. Não poderia sê-lo. Saulo, aos 78, tinha a língua solta dos que acreditam estar próximo o encontro com o desenlace. É, talvez, uma autobiografia romanceada. Parte de um caso singular da defesa, por Saulo, de um pai, acusado de pedofilia pela própria mulher, a partir de gravação feita com os filhos. E esse eixo básico não é seguido. Há muitas vertentes e ocasiões em que o autor, vaidoso, nomeia várias celebridades. São tantas, entre elas, Che Guevara. Conta um jantar com ele, em 1962, em Punta Del Este, Uruguai. Em seguida, vem a concessão por Jânio Quadros da “Ordem do Cruzeiro do Sul” ao então ministro cubano. Por fim, afirma que Fidel Castro estaria por traz da trama que matou Guevara na Bolívia.
Paro por aqui, não vou tirar o prazer dos futuros leitores do livro. É um passeio pela história brasileira contemporânea. No livro, Saulo não poupa Lula. Diz cobras e lagartos do então presidente da República e se derrama em amores e elogiosa José Sarney. Não só Lula é criticado, até alguns integrantes do STF são descritos sem muita piedade pela azedia de Saulo. A história, que é o fim condutor da narrativa, não concluída no texto, merece um epílogo em que ele deslinda tudo.
Não gostei da batida citação – o livro tem 140 – atribuída a Charles Chaplin usada para fechar o livro. Ela, no meu pensar, é piegas e esgotada. Merecia outra, talvez dele próprio. Quem sabe, esta: “Espero que tais fatos esclareçam algumas interrogações daqueles que os viram acontecer e sejam úteis para as novas gerações, que ainda dependem dos historiadores, nem sempre muito fiéis, segundo tenho visto em isoladas manifestações de jornais. Mas advirto: os fatos são aqui narrados numa espantosa desordem cronológica, porém fielmente. Detesto a manipulação do passado e o mascaramento das versões”. Saulo Ramos.
João Soares Neto
CRÔNICA PUBLICADA NO JORNAL O ESTADO EM 3/5/2013