CAPISTRANO, POR QUEM E PARA QUEM NÃO O CONHECE

João Soares Neto, ocupante da cadeira Capistrano de Abreu na Academia Fortalezense de Letras.
Diz Gabriel Garcia Márquez que “um escritor já nasce escritor, nasce com o dom e a vocação, precisando apenas aprender a escrever”. Capistrano dizia que “aprender a escrever é aprender a ler”, especialmente para ele, historiador, que parte da leitura crítica de livros, textos, traduções e documentos e os persegue em uma busca sem fim, com um estilo que faz inveja. Historia como se fizesse uma longa crônica, um ensaio, um romance e há trechos até que são poesias, plenos de belas imagens e profundos encantos.
José Aurélio Saraiva Câmara, um de seus biógrafos, diz com propriedade: “Descrever uma vida como a de Capistrano de Abreu é enfrentar um seríssimo tropeço: o paradoxo que representa a humildade do homem ante a majestade da obra; a timidez e a indiferença do operário face a audácia e à afirmação granítica do trabalho realizado. Na sua história, o homem diz pouco e a obra diz tudo.”
Tenho consciência disso. Falta-me maior intimidade com a sua obra. Sou curioso e o conhecimento não tem dono, mas neófito sou em admirá-lo. Não vejo em mim autoridade para descrever a vida, tampouco a obra, pois além do embasamento que não tenho, some-se a isso o exíguo tempo de menos de uma semana, sem prejuízo dos meus outros afazeres, em que fui gentilmente compelido por esta Academia Fortalezense de Letras a escrever este relato.
Sabem com que credenciais? A qualidade única de ocupante da cadeira que tem Capistrano como patrono. Louvo-me da aversão declarada de Capistrano às academias e sociedades a que não quis pertencer para ter a certeza de que, na dimensão em que ele estiver, não se ocupará de dar atenção ao que aqui será brevemente mal dito.
As comemorações dos 150 anos de nascimento de João Capistrano de Abreu ecoam por todo o Brasil. No Ceará houve um calendário oportunamente conduzido pela Secretaria de Cultura, universidades, Prefeitura de Maranguape e um apreciável número de artigos e ensaios nos jornais de Fortaleza. A propósito, compulsando a memória do Jornal “O Povo” de 1953, pude observar que a Prefeitura de Fortaleza lançou um concurso público sobre a vida e a obra de Capistrano por seu centenário. Apenas um candidato concorreu, Pedro Gomes de Matos.
Fosse hoje, certamente, dezenas o fariam. De qualquer modo, não é mais necessário pedir vênia aos meus pares, pois declaro pública a minha incapacidade de cumprir com brilho a missão que, se juízo tivesse, não teria aceitado. Este trabalho foi feito apenas com amor, pois como dizia o próprio Capistrano: “As obras de amor são as únicas que pagam o sacrifício”. Vamos, pois, ao sacrifício.
No último dia 23 deste mês de outubro de 2003 fez 150 anos que João Capistrano de Abreu, filho de Antônia e Joaquim Honório de Abreu, nasceu na Ladeira Grande, no sítio Columinjuba, Maranguape e de lá partiria para ser, provavelmente, o maior historiador brasileiro.
De família simples, solitário, crítico, irônico e taciturno, foi sempre maior do que os colégios onde estudou: o Colégio de Educandos (onde hoje fica o Colégio da Imaculada Conceição), que abrigava meninos pobres; o Ateneu Cearense, o Seminário da Prainha, de onde foi desligado por seu ceticismo mordaz e, especialmente, por não ser vocacionado para padre. Posteriormente, já aos 18 anos, foi reprovado quando dos preparatórios para a Faculdade de Direito do Recife.
Foi reprovado nos preparatórios porque seu aprendizado não se cingia ao conteúdo programático estabelecido para quem desejasse ser advogado, mas já se misturava em Recife aos intelectuais Silvio Romero, Joaquim Nabuco, Tomás Pompeu, Tobias Barreto, Rocha Lima e outros. Já se iniciava na leitura de Stuart Mill, Spencer, Taine e Buckle e aprendia latim, inglês e francês. Voltou para Columinjuba, por conta da carta trocada entre o correspondente em Recife e seu pai, Jerônimo Honório.
Debaixo de repreensões, foi para o cabo de uma enxada como um cabloco qualquer, em meio a um alambique para destilar cachaça, um engenho de açúcar e rapadura e a bolandeira que transformava a mandioca em farinha. Durou pouco esse tempo. Inquieto, desobediente, sabia que seu destino nada tinha a ver com a casa paterna. Engajou-se, em seguida, em movimentos literários e culturais de Fortaleza quando escreveu “Perfis Juvenis”, que era, na verdade, dois ensaios sobre a poesia de Junqueira Freire e Casimiro de Abreu, publicados em edições sucessivas no “Maranguapense”, jornal recém criado em Maranguape.
Foi nessa época que retomou os contatos com Tomás Pompeu, João Lopes e Xilderico de Farias, momento em que eclodia em Fortaleza uma agitação literária chamada jocosamente de “Academia Francesa” que reunia jovens quase imberbes.
Capistrano, que nem aos 20 chegara, associava-se a Araripe Júnior, João Lopes, Rocha Lima e Tomás Pompeu que, igualmente, iriam criar uma escola noturna – A Escola Popular – que objetivava educar operários, ensinando-lhes, como registrou o jornal A Constituição, de 02 de junho de 1874: “A escola noturna popular, além das aulas de primeiras letras, gramática, francês, inglês, geografia e aritmética, que começaram a funcionar, abrirá espaço para uma série de conferências do gênero das que estão fazendo na Corte com tanta aceitação
Fundaram também o jornal Fraternidade, de origem maçônica e inspiração positivista, que pretendia ser arauto de um movimento libertário contra a religiosidade do clero e dos fiéis, apregoada pelo jornal A Tribuna Católica.
É provável que a figura admirada e já então mítica de José de Alencar, ido e vivido na Corte, que chegara doente e alquebrado à Fortaleza em meados de 1874, tenha lhe dado o alento que faltava para deixar o Ceará.
Capistrano, aos 21 anos, tinha os pés na província e os sonhos na Corte, onde precisava beber os conhecimentos que o transformariam no grande historiador que foi. De Alencar se aproximou e ganhou o respeito. Rodolfo Teófilo, em O Ateneu Cearense, narra esse encontro: “A impressão que teve o consagrado homem de letras e político, foi a que se pode ter de um caboclo matuto. Começaram a conversar e, no fim de alguns minutos, Alencar, com grande admiração, viu que ali não estava um simples sertanejo, porém um erudito.”
Era efervescência demais para uma terra aquietada e pobre. Arrumou as trouxas, pediu a benção ao pai, de quem divergia no pensar e agir, pegou o vapor Guará no Porto de Fortaleza, em 12 de abril de 1875, chegando ao Rio de Janeiro antes de completar 22 anos. Seria José de Alencar quem abriria as portas do Rio para Capistrano.
A partir daí é que explode a grandeza autodidata de Capistrano que admitia ser súdito do Império, mas não abria mão de ser, ao mesmo tempo, um cidadão brasileiro. É assim que José de Alencar apresenta Capistrano: “Esse moço, que já é fácil e elegante escritor, aspira ao estágio da imprensa desta Corte. Creio eu que, além de granjear nele um prestante colaborador, teria o jornalismo fluminense a fortuna de franquear a um homem do futuro o caminho da glória, que lhe estão atribuindo acidentes mínimos.”
Os caminhos da sua vida nunca foram fáceis, apesar das relações tão procuradas na Corte. Seu primeiro trabalho no Rio foi na Livraria Garnier como simples resenhador de livros por ela editados. É provável que começasse aí o seu conhecimento com os intelectuais que admirava e com os jornais para os quais remetia as resenhas. Em 1876 passou a morar e a lecionar português e francês no Colégio Aquino, um emergente estabelecimento que pretendia, entre outras coisas, preparar jovens para os cursos superiores.
Sua vida como redator-jornalista no Rio se inicia em 1879 na Gazeta de Notícias. Já em 1882, Valentim Magalhães, na seção Tipos e Tipões, de A Gazetinha, escreve sobre o jornalista Capistrano: “(…) quem seja aquele rapaz forte, de estatura meã, grosso de tronco, de cabeça um tanto cúbica, dessas que vêm bradando aos olhos da gente: ‘eu sou do norte’, de pescoço atlético, olhos pequeninos, piscos, míopes, escandalosamente míopes; trajando escuro com filosófico descuido, chapéu raso de que sobejam sobre a fronte cabelos pretos, ninguém sabe ou desconfia sequer quem seja ele, quando se esgueira rente à parede, cabeça levemente à banda, com o seu passo miudinho e ligeiro(…)(…) Pois esse rapaz é o Capistrano de Abreu, a cabeça mais ilustrada, mais pensadora, mais ‘curvada’ ao trabalho de quantos funcionam no escritório da Gazeta( …).”
Nesse mesmo ano de 79 fez concurso para oficial da Biblioteca Nacional, um misto de burocrata, bibliotecário e ledor de livros. Era o que sempre sonhara. Foi classificado em primeiro lugar, nomeado em 09 de agosto, e, a partir de então, começaria a consolidar a sua carreira de historiador.
Seriam transformadas em marca-páginas da história suas incursões brilhantes como crítico ou ensaísta literário. Por outro lado, o seu grande sonho profissional era ser professor do Colégio Pedro II, mantido pelo Império. E como nunca perdeu a sua veia mordaz, mesmo antes de fazer o concurso e ser aprovado, já criticava o ensino de História do colégio onde pretendia ensinar. Mesmo sabendo que o prof. Matoso Maia seria, certamente, examinador de sua futura banca, critica, genericamente, o seu livro “Historia do Brasil”. Matoso Maia lhe pede para identificar os erros. Ao que ele responde, dizendo: ”Não poder satisfazê-lo, entre outros motivos, porque muito provavelmente ainda nos havemos de encontrar frente a frente e reservamos para então o prazer um pouco malicioso de dar-lhe alguns quinaus.”
Tomava forma o grande historiador com ênfase na historiografia, que vem a ser a arte de escrever a história. Segundo José Honório Rodrigues, quando da morte do historiador Francisco Adolfo de Varnhagen, em necrológio que publicou no Jornal do Comércio, Capistrano mostrou: “m modelo de estudo sobre o mestre e o primeiro trabalho historiográfico, exemplar pelo espírito crítico, a orientação metodológica, o domínio filosófico.”
Casou, em 1881, com Maria José de Castro Fonseca, filha de um Almirante, a quem dera aulas particulares, particulares até demais, como se infere de carta sua a Assis Brasil: “Casei-me a 30 de março, isto é, dois meses antes do que esperava. Ainda não tinha casa pronta, nem podia demorar o casamento sem que sobreviessem obstáculos que poderiam ser insuperáveis.”
Desse casamento que durou apenas onze anos, pela morte de Maria José de febre puerperal, nasceram cinco filhos: Honorina, Adriano, Fernando, Henrique e Matilde. Os que merecem registros mais significativos em sua vasta correspondência são: a filha Honorina que viria a se tornar, em 10 de janeiro de 1911, contra a sua vontade e para sua profunda tristeza, a freira carmelita Maria José de Jesus, beatificada pela Igreja Católica e Fernando, a quem chamava de Abril, por ter nascido nesse mês e cuja morte prematura, de pneumonia dupla, em 24 de outubro de 1918, o fez baquear profundamente, aumentando a sua casmurrice e infelicidade.
Em 1883, mediante concurso em que superou outros quatro candidatos, entre eles, Franklin Távora, consegue realizar o sonho de ser professor do Colégio Pedro II, de Corografia, que vem a ser o estudo ou descrição geográfica de um país, região, província ou município e História do Brasil, com a tese Descobrimento do Brasil e seu Desenvolvimento no Século XVI. Em 1889 foi excluída do currículo escolar do Colégio Pedro II a cadeira de Historia do Brasil. Capistrano se recusa a ensinar História Geral, denuncia o fato e é posto em disponibilidade.
Nesse mesmo ano de 89 publica o seu primeiro livro: O Descobrimento do Brasil, escrito em 40 dias. A sua grande obra, Capítulos da História Colonial (1500-1800), foi produzida em um ano, sendo patrocinada pelo Centro Industrial do Brasil e publicada em 1907. É nela que fica realçada a sua capacidade de sintetizar, que o consagrou definitivamente como historiador e não um mero coletor de acontecimentos, nomes e datas.
Capistrano, expoente que era do Movimento de 1870, que tinha como pressuposto o cientificismo ou método crítico com três elementos básicos: testemunha visual, caráter lógico do relato e coerência entre o texto e realidade, renovou os métodos de investigação científica e de interpretação historiográfica brasileira da época, partindo do determinismo sociológico – positivista que foi e deixou de ser – para, em seguida, descobrir a essência do que regia a sociedade colonial.Fica claro que sua análise da sociedade brasileira, lastreada na influência teórica da teoria realista alemã de Leopold Von Ramke, enfoca o estudo do ambiente, dos fatores corográficos, da miscigenação da raça, dos aspectos econômicos e psicológicos,sempre realçando a conquista do interior pelo brasileiro mestiço.
Para ele, já mostrando a sua face republicana, o destaque não é o português ou reinol, mas a capacidade do povo e das pessoas comuns, sem expressão política, na procura de uma identidade nacional ao longo de nossa evolução histórica, deixando, cada vez mais patente, a desimportância do Rei, vice-rei, governadores e dos heróis.O povo é o sujeito da história.
Por outro lado, fugindo do geral e indo para o particular, visualiza com a sua ótica corográfica a cidade do Rio de Janeiro, que o abrigou por 53 anos, permitindo antever, como se urbanista, sociólogo e antropólogo fosse, com quase um século de antecedência, o caos em que viriam a se tornar as favelas nos morros cariocas.
Capistrano denuncia isso em carta a João Lúcio de Azevedo, em 11 de novembro de 1921: “Muita gente é amiga dos morros e cita em seu favor a opinião dos estrangeiros que aqui passam indiferentes ao que deixam. Sou adversário convicto: enquanto não for arrasada a maioria, morros são compartimentos estanques que impedem a circulação social.”
Autodidata, lendo muito mais que escrevia. Adorava ler na rede e para onde viajava pelo Brasil – quase sempre para casa de amigos – a levava sem medo e pudor. Curioso e inquieto, não sossegou até aprender a língua alemã, além do latim, francês e inglês que já manejava.
Sem nunca ter saído do Brasil, ao longo de seus 74 anos, incompletos, idade avançadíssima para a média de vida do brasileiro de sua época, foi se tornando cada vez mais culto, fechado em si mesmo, a ponto de se auto intitular, a partir de 1925, de João Ninguém, sem nunca perder a capacidade de escrever de forma simples, elegante e perspicaz, especialmente na sua vasta e dispersa correspondência aos amigos.
Sua correspondência, organizada pacientemente por José Honório Rodrigues em três volumes, é, segundo alguns, a sua segunda grande obra. É ela uma demonstração de apreço aos amigos, conhecimento profundo do que falava, firmeza de ideias, capacidade de rir de si mesmo, falar das perdas familiares, suas doenças, achaques e da caturra melancolia, que o acompanhou ate à morte em sua casa, em Botafogo, Rio, em 13 de agosto de 1927, rodeado de amigos verdadeiros que, em féretro a, pé, o levaram ao Cemitério.
Provavelmente, a melhor descrição de Capistrano de Abreu tenha sido feita por seu amigo João Pandiá Calógeras, um dos fundadores da Sociedade Capistrano de Abreu, em discurso no Instituto Histórico e Geográfico, logo após a sua morte. Diz Calógeras: “Rude, em sua terrível franqueza; hostil a todo o pedantismo; irremediavelmente indignado contra toda futilidade vaidosa, detestava hipócritas. Sincero admirador das mentalidades superiores era destituído de toda inveja. Indulgente, quando explicável a falta por um motivo mais alto, por amor à inteligência ou à bondade perdoava deslizes de menor alcance. Intratável em questões de honra, de lealdade e de afeição, não admitia atenuantes para o delinquente.”
Este perfil poderia ser resumido em uma frase do próprio Capistrano: “Eu proporia que se substituíssem todos os artigos da Constituição por: Artigo Único – Todo brasileiro fica obrigado a ter vergonha cara”. Mas, adocemos a sua mordacidade com duas frases suas:“Todo artista tem um germe original que é a base e o ‘substratum’ de seu talento” e, “Nunca pensei que eu pudesse morrer”.
Na verdade, não morreu. Transformou-se.

As citações estão contidas na Bibliografia consultada:

– AMARAL, Eduardo Lúcio Guilherme, Correspondência Cordial – Capistrano de Abreu e Guilherme Studart, Fortaleza, Museu do Ceará, Sec. Cultura do Ce, 2003.
– BUARQUE, Virginia A. Castro. Escrita Singular – Capistrano de Abreu e Madre Maria José, Fortaleza, Museu do Ceará, Sec. Cultura do Ce, 2003.
– CÂMARA, José Aurélio Saraiva. Capistrano de Abreu, UFC, 1999.
– Modernos Descobrimentos, Capistrano de Abreu Descobridor [on line]. Rio de Janeiro, PUC, Disponível: www.modernosdescobrimentos.inf.br [22.10.2003].
– RODRIGUES, José Honório (Org.). Correspondência – Obras de Capistrano de Abreu, 03 volumes, Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira, 1977.
– SÁEZ, Oscar Calavia. A Morte e o Sumiço de Capistrano de Abreu [on line]. Florianópolis UFSC. Disponível: www.cfh.ufsc.br [26.10.2003]