O nosso comum amigo, César Asfor Rocha, surpreendeu-me no Natal passado com a sua encomendada, mas especial dedicatória (“Ao João Soares, que tem a paixão pela letras, o abraço do José Sarney) no livro “Saraminda”.
Li-o no dealbar do ano e, passado o processo eleitoral do Senado e pensadas as dores das suas incisões vesiculares, vi-me aprestado a lhe agradecer a gentileza.
Aviso-o que não sou crítico literário. Faço da empresa o meu viver, sem esquecer de tecer sonhos com os sentidos. Perpetro escritos, meras crônicas descompromissadas e publicadas e, guardados estão poemas ainda virgens de outros olhos, pois a auto-censura os enclausura
Além do amigo comum, restam-nos apenas a identidade do Jota e do Esse que emolduram o seu e o meu nome, mas isto é alongar conversa, para a qual não recebi permissão.
Receba, como agradecimento, o que escrevi abaixo, tão isento quanto pode ser um pré- sessentão encantado por Saraminda, nossa amada.
Cordialmente,
João Soares Neto
SARAMINDA E O SARNEY SENSUAL
Saraminda prova que José Sarney não é normal. É preciso ter muito de louco para misturar personagens, beirar a criação de um realismo fantástico (“Você não está morta? Aqui todos morrem e vivem.”) com uma latinidade que o escritor brasileiro não costuma exercer e falar de comida (“Um brochete de rabo de jacaré, frito com banha de anta e conhaque, um hoko e um assado de cochon bois”), moda ( “O vestido tinha a saia comprida, de pregas que caíam da cintura e eram acompanhados pelas dobras até a barra da saia circundada por uma cinta de rendas e de franjas bordadas. Um casaco de elegante corte de sino, repartido em duas abas também rendadas, que desciam como estolas e passavam alongadas além da cintura, ladeadas por duas fileiras de botões cobertos de cetim e pequenos bordados”) e de uma guerra pelo território do Amapá (“acabo de saber que a França perdeu estas terras que agora são do Brasil. Foi uma decisão da Suíça.
Amanhã, só vai haver uma bandeira, a do Brasil”) que não houve entre dois países tão distintos quanto o Brasil e França.
Saraminda prova que José Sarney não é político, pois expõe, mesmo sem querer ou querendo, o seu lado sensual ao descrever como um retratista de pico de pena ou crayon o corpo(“Nela o sangue bretão, judeu, índio, banto misturou-se ao longo dos séculos, concentrou-se nos olhos, afinou os lábios, alongou-lhe o pescoço, deu-lhe sorte e sedução”), a faceirice( “Eu quero que você tenha alegria e felicidade.
Prazer de coisa de amor de gente que se junta… Quero que você receba meu corpo de ouro embrulhado em papel de seda, enrolado em veludo, cheirando a patchuli”), as falas(”Seu Cleto, me trate com respeito. Não sou coisa suja, sou mulher para ser tratada com gosto. Aprecio modos. Entrei na vida mas não sou uma sem-vergonha”) dessa mulher tão simples e paradoxal, como se fora uma personagem vivida pela Sônia Braga dos áureos tempos.
Saraminda prova que José Sarney não é rico. Se o fora não descreveria com tanta paixão a avidez dos garimpeiros, a cobiça(“O garimpo é de uma solidão imensa. Quando a gente olha, parece que não é no mundo. O ouro não tem cheiro. Se tivesse, o homem ia farejar e saberia onde ele está”) e a luxúria(“tive vontade de beijar, beijar com força, ficar deitado nele, mas me controlei , não dei modos para não verem onde estava minha bestitude”)que o ouro( “Não achei que fosse ouro, de tão feia, e pude então compreender que a beleza do ouro está nos homens”.) exerce sobre a razão e o imaginário de pessoas rudes com estéticas comprometidas pelas rugas e as rusgas que terminam em sangue para aplacar a ira dos deuses.
Saraminda atesta que José Sarney não é romancista. É um espécime novo, um poemancista com imagens (“Na casa de sombras, era o remoer da lembrança que alimentava os fantasmas”) e figuras(“Era um brinquedo muito triste esse jogo de gostar”) dignas de um Borgesïï
Saraminda fez enfim, José Sarney calar os que ainda não têm olhos para ver que, além da sua matreirice, da lhaneza, do faro e da capacidade de focar a política, sobram-lhe sentimentos lustrados em palavras ajuntadas em bateias de idéias que brotam como florestas de uma amazônia de encantamentos.
João Soares Neto,
especial para o DN.