Conheço José Maria Barros Pinho desde 1961. Fomos colegas da turma pioneira da Escola de Administração do Ceará. Barros Pinho chegara do Piauí, via Crateús, e assentara-se na Pedro Pereira com Padre Mororó. Estudamos, lutamos, viajamos e fizemos política estudantil. Barros Pinho, por sua liderança, pagou um preço muito alto. A vida política quase pagou essa conta. Mas isto é outra história.
Desde esse tempo, Barros Pinho aliava à sua retórica a veia poética que ele teima em situar nas barrancas do Rio Parnaíba. Sua poética transcende às nascentes e a foz de um rio, ela se fez mar e inundou a praia onde moureja seus versos há mais de quatro décadas.
Agora, na juventude de sua maturidade, envereda pelo gênero da crônica, salvo incursão ligeira numa antologia de cronistas novos em 1971. Primeiro concorreu com o conto “O Zeca do tiro no bode da Nazária” ao Prêmio Ideal de Literatura, ano 2000, merecendo destaque. Depois, neste livro, reuniu 16 contos, editados pela Record, 2002, e, já na estréia oficial como contista, teve a honra de ser prefaciado por Gerardo Melo Mourão, o maior intelectual vivo nascido no Ceará e, sem dúvida, um dos maiores do Brasil. Se isso não bastasse, José Alcides Pinto (na orelha), Cineas Santos e Francisco Carvalho (na contra-capa) dão o fechamento, aprovação e louvação à obra de Barros Pinho. O que dizer ainda, até porque não sou crítico literário. Sou sim, um leitor crítico. Concordo com Lya Luft, no seu livro “O Rio do Meio”, p. 134/135, quando diz:
Impressiona-me que outros analisem com tanta clareza textos que escrevi: comentários eruditos, profundas aproximações, fazem-me parecer tão grave que chego a me inquietar, como se, de volta aos bancos de escola, andasse outra vez distraída de tarefas importantes. Essa de que aí falam sou realmente eu?
Pois é, Barros Pinho, embora possa ser vaidoso de sua trajetória, não é uma pessoa grave. Barros Pinho não se desfaz da veia poética:
O sol era o mais claro referencial da manhã. O rio, a mesma indiferença de sempre. A capela, no alto, erguia-se para o céu. (p.20).
E vai em frente:
Os peitos dela, mal comparando, eram duas nascentes de bicos finos, ver bico de beija-flor atacando no mato das veredas no início das águas (p.44)
Por outro lado, constrói frases próprias de cronistas não derramados, mas aprumados em suas tramas:
Os dias eram uma gulodice comendo o tempo”(p.28). “Vive da sala para o quarto, onde padece seu sofrimento de dor dentro dela. É tanto que a gente sem querer, olhando para ela, bota água nos olhos com gosto de não parar”(p.47). “Fêmea comigo hoje não tem preço e pode até custar a vida de quem meter tramela na minha tão grande vontade (p.67).
Destaque-se, ainda, o tratamento dado aos personagens, com suas falas, pensamentos, medos, modos, com a pureza de um mundo não urbano talvez não mais existente, perdido em meio a rios sempre recorrentes, mesmo que o conto seja outro, e as margens dêem em lugares diferentes e nos quais nunca pisamos.
Há contos com personagens duros e dramáticos em seus conteúdos, gestados na infância, paridos nesta maturidade libertária de fantasmas agourentos, trazem epílogos cruéis ou fantásticos, apascentando a alma de quem escreve, disfarçando a dor vinda de longe, não se perde com o tempo e se recria no imaginário da prosa curta, mas firme. Assim é com Zeca:
O Zeca se rezava, rezava com o punhal na mão”(p.60), Bené Gavião “O Bené pulou este batente e saiu daqui com uma cabeça de onça, o corpo de homem e asas de gavião encantado (p.85)
Ou com Tia Donana:
Vestia o vestido encarnado da promessa feita ao italiano, seu marido, sob o olhar espantado de quantos se preparavam para assistir a cerimônia oficiada pelo cônego Deusdedith de Freitas, que nos dentros dos botões de sua batina viveu atormentado por muito tempo (p.127).
JOÃO SOARES NETO
Academia Fortalezense De Letras
Agosto de 2003.