Neste Natal vá ao encontro dos que você ama, sem medo e com o passo firme dos que ainda acreditam na força do amor.
MEUS HOMENS
Faltando 06 dias para o ano de 1999 terminar e com essa estória da mídia publicar listas disso e daquilo, pois não é que me lembrei de fazer a lista dos cinco homens com os quais mantive contato pessoal, mesmo que eventual, e que ficaram no meu “Top of the mind”, ou no topo das minhas lembranças.
Da vida universitária dois nomes surgiram cristalinos: Heribaldo Costa e Parsifal Barroso. Heribaldo era professor de Introdução à Ciência do Direito e a ele devo parte do pouco que aprendi de filosofia e lógica. Austero, obrigava os alunos a usar paletó em suas aulas e teve a coragem de dar mais de cem zeros em uma prova semestral. Houve uma campanha forte contra ele e a aposentadoria o acolheu.
Parsifal era Governador do Estado e dava aulas de Ciência Política com a simplicidade de um padre e a fluência e o saber que Deus lhe deu. Falava pausado, era enfático e apaixonado pelo conhecimento. Vez por outra, me pedia carona para ir deixá-lo em palácio.
Vão me chamar de presumido (faz mal não), pois vou citar três nomes consagrados mundialmente. Em 1962 passei num concurso e fui fazer um curso de verão na Universidade de Harvard. O coordenador do curso era Henry Kissinger, que viria a ser, em seguida, Secretário de Estado e o segundo homem mais importante dos Estados Unidos, apesar de ser judeu alemão. Nariz adunco, óculos grossos, voz com sotaque, grave e rouco, ficava fulo da vida quando se falava em imperialismo americano e, uma vez, nos perguntou sobre “o imperialismo paulista”.
Nessa mesma viagem fomos a Washington para uma visita a várias autoridades. Eu, como fazia direito, integrei um pequeno grupo que teve a sorte de conversar com Bob Kennedy, então Ministro da Justiça. Seu gabinete era amplo, poltronas de couro e um grande quadro abstrato na parede principal. Ele era jovem, absolutamente descontraído e cordial. Em cima do seu birô repousava um capacete amassado de soldado e a seus pés dormitava um enorme cão. Na hora da informalidade, perguntou se sabíamos a razão daquele capacete estar ali. É claro que não sabíamos. Disse ser o símbolo da luta pelos direitos civis dos negros. Brincalhão, indagou quem entendia de pintura para explicar o seu quadro abstrato. Muitos palpites, nenhum acerto. Ele riu e falou que era uma chuva de papel picado quando das comemorações da eleição de seu irmão John.
De paletó e gravata, todos ficamos nos jardins internos da Casa Branca, ali onde os presidentes dão entrevistas. De repente, lá vem John Kennedy. Louro, queimado de sol e paletó azul marinho. Falou de sua “aliança para o progresso”, perguntou quantos futuros presidentes do Brasil sairiam dali e trocou palavras amenas com alguns de nós. A mim, por exemplo, perguntou de que região eu era. Nervoso, troquei nordeste por noroeste. Quatro meses após ele seria assassinado em Dallas.
Feliz Ano Novo para todos.
João Soares Neto,
escritor
CRÔNICA PUBLICADA NO DIÁRIO DO NORDESTE EM 26/12/1999.
A VIDA EM CÓDIGO: SAULO RAMOS
Faz anos. Ganhei o livro “Código da Vida”, de Saulo Ramos. Li-o, mais por curiosidade que por outra razão. O livro é derramado, aberto, sem censura. Aos 78 anos, em 2007, curado de um câncer, e sabedor de uma doença coronária grave, Saulo Ramos resolve contar sua vida, do seu jeito, seguindo seus cânones. Escreve como advogado, mas sem esquecer a sua vertente literária – tipo contador de histórias- como integrante de duas academias de letras: a de Ribeirão Preto e a Santista. O livro já teve mais de 20 reimpressões e deve aumentar os lucros da editora Planeta, agora que Saulo Ramos morreu, em 29 de abril último, vítima do coração já esfalfado, em face de sua dura, brilhante e, quiçá, romanesca vida.
Nasceu em 1929, em Brodowski, cidade pequena, vizinha a Ribeirão Preto. Lá, já havia nascido outro brasileiro ilustre, Cândido Portinari. Portinariestá lá na página zero do seu livro com um retrato em crayon de Saulo, aos 24 anos. Ele manuscreve e proclama: “Para Saulo, que honrará nossa Brodowski, lembrança afetuosa do Portinari, 1953”. Não deu outra, Saulo foi um dos maiores paulistas dos últimos tempos.
Nasceu pobre, chegou a ser caminhoneiro, mas descobriu na advocacia o seu destino. Discípulo de Vicente Ráo, um grande advogado, resolveu fazer carreira solo. Foi quase tudo na advocacia e na política brasileira. Só não foi mais porque não o quis. Começou trabalhando com Mário Covas, depois foi ajudar Jânio Quadros a ser presidente por sete meses e chegou a ser ministro da Justiça de José Sarney, de quem era grande amigo. Tancredo morreu como todos sabem, antes da posse na presidência. Havia um impasse. Saulo comandou a equipe que solucionou o problema constitucional. O resto já é história.
O livro não é um exercício de modéstia. Não poderia sê-lo. Saulo, aos 78, tinha a língua solta dos que acreditam estar próximo o encontro com o desenlace. É, talvez, uma autobiografia romanceada. Parte de um caso singular da defesa, por Saulo, de um pai, acusado de pedofilia pela própria mulher, a partir de gravação feita com os filhos. E esse eixo básico não é seguido. Há muitas vertentes e ocasiões em que o autor, vaidoso, nomeia várias celebridades. São tantas, entre elas, Che Guevara. Conta um jantar com ele, em 1962, em Punta Del Este, Uruguai. Em seguida, vem a concessão por Jânio Quadros da “Ordem do Cruzeiro do Sul” ao então ministro cubano. Por fim, afirma que Fidel Castro estaria por traz da trama que matou Guevara na Bolívia.
Paro por aqui, não vou tirar o prazer dos futuros leitores do livro. É um passeio pela história brasileira contemporânea. No livro, Saulo não poupa Lula. Diz cobras e lagartos do então presidente da República e se derrama em amores e elogiosa José Sarney. Não só Lula é criticado, até alguns integrantes do STF são descritos sem muita piedade pela azedia de Saulo. A história, que é o fim condutor da narrativa, não concluída no texto, merece um epílogo em que ele deslinda tudo.
Não gostei da batida citação – o livro tem 140 – atribuída a Charles Chaplin usada para fechar o livro. Ela, no meu pensar, é piegas e esgotada. Merecia outra, talvez dele próprio. Quem sabe, esta: “Espero que tais fatos esclareçam algumas interrogações daqueles que os viram acontecer e sejam úteis para as novas gerações, que ainda dependem dos historiadores, nem sempre muito fiéis, segundo tenho visto em isoladas manifestações de jornais. Mas advirto: os fatos são aqui narrados numa espantosa desordem cronológica, porém fielmente. Detesto a manipulação do passado e o mascaramento das versões”. Saulo Ramos.
João Soares Neto
CRÔNICA PUBLICADA NO JORNAL O ESTADO EM 3/5/2013
ENFARTE E FAMÍLIA
Um amigo de velhas datas liga pedindo uma hora para conversar comigo. Como esse amigo sabe que não revelarei seu nome, nem sob tortura, posso me permitir escrever, em linhas gerais, sobre o teor da nossa conversa. Aliás, eu submeti este artigo à sua análise.
Um dia, dirigindo o seu carro após o trabalho, veio aquela dor violenta entre as costas e o peito e ele teve força de chegar a um hospital. Saiu de lá dez dias após com três pontes de safena, recomendações sobre mudança de estilo de vida e uma porção de remédios a tomar todos os dias, pelo resto da vida. Chamou a mulher e disse desejar repensar sua vida. Ela chorou abraçada a ele e ficou calada. Ficou mais 20 dias em casa. Os dias não passavam, a televisão cansava e a cabeça não parava de martelar questões sem respostas.
Esse meu amigo desejava trocar ideias sobre ele, sua empresa e seus filhos. Descobrira-se mortal. Reuniu a mulher e os filhos para uma conversa. Disse que ia tirar o time de campo e queria saber a opinião de cada um. Foi um Deus nos acuda. Segundo ele, os filhos ficaram apavorados, pois ainda não estavam preparados para comandar a empresa, feita com muito trabalho, dedicação e renúncia.
Por essas dúvidas ele me procurou e conversamos mais do tempo combinado. Relembramos fatos, demos algumas risadas e até algumas lágrimas rolaram, talvez pela certeza da finitude e da nossa incapacidade de administrar situações complexas.
Lembrei – me, rindo comigo mesmo, da condição de “conselheiro” e me descobri sem quase nenhuma capacidade de ajudá-lo. Preferi que, nós dois, entendêssemos os dramas na sua cabeça e analisássemos o que, igualmente, poderiam pensar – naquela situação – os seus filhos. Uma coisa estava definida para ele: queria escolher alguém capaz para dirigir os negócios no lugar dele. Ele ficaria apenas dando as diretrizes. A quem escolher? Falou, com carinho, sobre os filhos, quase todos formados, mas nenhum quisera fazer mestrado ou ganhar experiência trabalhando em outras empresas. “Não tinham estrada” e não conheciam, no duro, o chão de fábrica. Viviam do que a empresa lhes pagava e não esperavam, para tão rápido, a possibilidade de um deles ter de assumir, para valer, a direção do negócio. Talvez, por culpa do meu amigo, não eram ainda trabalhadores profissionais, de sol a sol, não conheciam o seu atual nível de “stress”, nem amargaram anos de lutas e as noites em claro antes de tomar decisões.
A partir de suas informações, fizemos o perfil de cada um e, além de todos os problemas, como sombras, as figuras de nora e genro apareceram. A coisa complicava e eu sem saber mais o que dizer. Por fim, lhe sugeri optar por alguém de fora da família, com características e habilidades semelhantes às que ele acreditava ter ou queria para a empresa, neste mundo competitivo, não morrer. Ele coçou a cabeça e pediu um tempo para pensar.
Há três dias recebi um telefonema dele. Contratara um profissional de excelente nível, na faixa dos 30 anos, ganhando quase o mesmo que seus filhos que ficaram resmungando e ele bateu firme na mesa. Estava decidido. Nenhum assumiria, continuariam fazendo o que sabiam e ainda era pouco. Hoje, ele viaja, pela primeira vez, à Europa. Boa viagem.
João Soares Neto,
escritor
CRÔNICA PUBLICADA NO DIÁRIO DO NORDESTE EM 05/12/1999.
PSIQUÉ
Neste mês de dezembro todos recebem cartões, brindes, presentes e convites. Boa parte deles peca pela falta de imaginação e alguns atentam contra a sensibilidade. Um dos convites que recebi me chamou a atenção. Foi um de formatura em psicologia.
Por que me chamou a atenção? Pela linda gravura de William Adolphe Bouguereau, designada como “Invading Cupid’s realm” ou invadindo o reino de Cupido. Uma linda mulher semi-nua cercada de anjos parece quebrar barreiras.
Foi isso o que o convite me passou: quebrar barreiras. Além dessa abertura inusitada, procurou não puxar saco de ninguém escolhendo os pais como “patronos” e os mestres como “paraninfos”. E não fica só nisso. Conta o Mito de Eros e Psiqué. Vejam um dos trechos: “Psiqué penetrou o palácio e, a partir de então, foi servida por uma multidão de Vozes, que lhe atendiam mesmo os desejos não formulados. Naquela mesma noite da chegada da princesa, Eros, sem se deixar ver, fez de Psiqué sua mulher, mas, antes do nascer do sol, desapareceu rápida e misteriosamente”.
Ainda fugindo das citações convencionais, o convite contém citações que transcrevo para conhecimento de vocês.
De Ruy Barbosa, aos pais (Se um dia já homem feito e realizado, sentires que a terra cede a teus pés e que não há ninguém para te estender a mão, esquece a tua maturidade, passa pela tua mocidade, volta à tua infância e balbucia entre lágrimas e esperança as últimas palavras que te restarão na alma: meu pai, minha mãe).
De Fernando Pessoa, aos professores (Mestre, meu mestre! Na mágoa quotidiana das matemáticas do ser, Eu escrevo de lado como um pó de todos os ventos, Ergo as mãos para ti, que estás longe, tão longe de mim!).
Mário Quintana, aos clientes (… até que um dia, por astúcia ou por acaso, depois de quase todos os enganos, ele descobriu a porta do labirinto. Nada de ir tateando os muros como um cego. Nada de muros. Seus passos tinham – enfim! – a liberdade de traçar seus próprios labirintos).
Como mensagem final, Manuel Bandeira (Assim eu quereria o meu último poema. Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais. Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas. Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume. A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos. A paixão dos suicidas que se matam sem explicação).
Não é um charme?
João Soares Neto,
escritor
CRÔNICA PUBLICADA NO DIÁRIO DO NORDESTE EM 19/12/1999.
IMPACTO
A gente vê na televisão, lê na revista e no jornal e não sente quase nada. 214 pessoas morreram na queda no mar de um boeing 767 da Egypt Air, no nordeste dos Estados Unidos. E daí?
A banalização da desgraça alheia passa pelas mortes das Febens da vida, na indiferença na doença grave de uma pessoa conhecida, nas micro-guerras de todos os dias, nas guerrilhas, no desemprego definitivo, nos assassinos paranóicos de escolas, empresas e cinemas, nas lutas dos sem terra, na Aids e a fome dizimando a África com os olhos cegos da Organização Mundial de Saúde, preocupada com a obesidade no Primeiro Mundo e na morte de uma prefeita que queria apenas trabalhar honestamente.
E nós comendo, rindo, trabalhando, dormindo, como se vivêssemos em um outro planeta e estivéssemos anestesiados. Afinal, a anestesia serve para alguma coisa, mitiga ou suprime dores/ sentimentos que, após a sedação, voltam fortes ou desaparecem, se a razão da dor ou do sentimento foi extirpada ou os nervos definitivamente lesados.
Mas falávamos de desgraça e de como essas desgraças não nos causam mais impactos. Talvez, se pudéssemos, gostaríamos de um pouco mais de tranqüilidade, mas como? Queremos o controle remoto para o portão, o celular que nos azucrina, o cartão de crédito, o computador, a tevê com os seus shows da vida e da morte, os jornais com suas fofocas e a dia a dia com a sua dureza.
Somos bombardeados com informações. O que ganhamos com tanta informação? De que vale uma linha quente (hot line) que nos mostra, a todo instante, as desgraças do mundo, os cartéis de droga, governos sendo depostos, fofocas, crianças abusadas sexualmente, pornografia na Internet, o FMI ditando normas, um presidente de CPI querendo aparecer, os cartões de crédito cobrando os juros da cara com a maior cara de pau?
Creio que isso parece um pouco do apocalipse. A burrice de não saber usar o que o progresso nos concede, de não entender o mundo e saber conviver com as pessoas. Cada um vai se fechando nos seus muros existenciais, deixando de sentir os impactos, quer das sensações positivas, quer das que nos deveriam machucar profundamente e apenas causam – quando causam – mossas em nossos sentimentos e consciências.
Mal comparando, é como alguém que faz plástica e fica perguntando aos outros se ficou bom. Quem tem que saber é a própria pessoa, os outros não estão nem ai. Ninguém está nem ai para as dores dos outros, imagine plástica. E tudo parece plástica.
E no meio de tudo que escrevi de forma desencontrada, propositadamente, pode existir alguma resposta e cada um deve procurá-la do seu jeito, na urgência do tempo que passa e dos impactos que não ferem mais, desde que não sejamos nós as vítimas. Nesse caso, a coisa muda. E como muda.
João Soares Neto,
escritor
CRÔNICA PUBLICADA NO DIÁRIO DO NORDESTE EM 07/11/1999.
A PARANÓIA DO 2000
Está todo mundo contando. Faltam 24 dias para o ano 2000. E daí? O que é que este tal ano dois mil vai mudar na sua vida se você mesmo não resolver mudar? Não é o tempo, se considerarmos que um ano é um período de tempo, que muda você. O que muda você é o uso que faz do tempo. Então, cara prepare-se para mudar daqui a 25 dias ou tudo vai continuar na mesma, sem que o calendário possa ser usado a seu favor.
Um doidinho, Albert Einstein, na primeira metade deste século, andou desmanchando o que Isaac Newton dizia há tempos: o tempo é absoluto. Não é. O tempo é relativo, segundo o Albert. E para entender tudo isso é preciso ficar sabendo que não existem só três dimensões: altura, comprimento e largura, formando o espaço. Além dessas três existe o tempo, que é uma quarta dimensão. Pois voltando ao que interessa, nós vivemos em função do espaço e do tempo e é por tal razão que digo: se não soubermos aproveitar o tempo, de nada valerá o espaço, isto é, o mundinho que escolhemos para nós.
Pode parecer confuso o que disse acima, mas não é. Se tiver dúvida, releia.
Você precisa administrar o seu tempo, fazer as coisas acontecerem, ao invés de ficar na janela olhando o mundo rodar. Mova-se, traduza-se em movimento, ação e descubra em si e nos outros o sentido de sua vida. Vá tentando e consegue. Não desanime se o seu atual espaço não lhe for favorável, respire fundo e lembre-se que o mundo todo é o seu espaço, só o tempo é finito, em sua dimensão.
O que estou querendo lhe passar é que é preciso limpar a sujeira que o tempo deixou em seu corpo e na sua mente. Remova as estruturas superadas que só servem de obstáculo às mudanças que você ensaia fazer e não faz. Sai dessa, se você acha que o 2000 é milagroso, vai rodar. Quem tem que obrar o milagre é você, sacudindo os seus poréns e entretantos. Deixe de procurar resposta no tempo e no espaço, a resposta está, usando o que disse Taiguara, no “universo do teu corpo”. Mexa-se e descubra se pode mandar para a cucuia o que lhe está enchendo o saco há tempos. Aproveite a desculpa do ano 2000 para romper alguns preconceitos que você mesmo criou. Dane-se o que os outros pensam ou você vai ficar ai esperando por milagre?
Daqui a alguns dias você será uma pessoa do século passado – se você acredita que o século termina em 1999, mas isto é outra estória – e se não ficar atento, independente da sua idade, poderá parecer antigo, ultrapassado. Mostre que não é antigo, ligue-se no espaço e no tempo e desligue-se das pessoas chatas que perturbaram no “século passado”. Assuma um compromisso e tente o usar o tempo como aliado e o seu espaço parecerá mais livre e despido de obstáculos para encontrar a felicidade que está aí no “universo do seu corpo” e da sua alma.
João Soares Neto,
escritor
CRÔNICA PUBLICADA NO DIÁRIO DO NORDESTE EM 12/12/1999.
ONTEM E HOJE
Estava eu cá pensando como os meninos de hoje são diferentes dos de antigamente. Tenho um amigo, filho de um amigo, de sete anos. Ele me chama de João e não tem a menor cerimônia em falar comigo. Até a última vez em que o vi ele tinha quatro pontos na testa, já havia visto o “Titanic”34 vezes, montara uma réplica do dito cujo sem grandes dificuldades e mexia com informática, especialmente jogos.
Por conta disso, lembrei da minha infância, quando qualquer pessoa mais idosa era senhor ou senhora e resolvi recolher fatos, alguns bobos, perdidos no tempo que aconteceram comigo. Muitos deles não fazem hoje o menor sentido, mas acreditem, aconteceram.
– Aos cinco anos me perdi. Fiquei olhando desconfiado para todos os lados. Um senhor perguntou meu nome, o nome dos meus pais e onde eu morava. Voltei para casa. Todos se conheciam.
– Tinha só nove anos e gostava de voar de teco-teco (avião monomotor) com meu pai. Ele colocava um caixão coberto de alumínio cheio de gelo dentro do avião. Descíamos nas praias desertas e comprávamos peixes. Voltava feliz e cheirando a peixe.
– Nessa mesma época aproveitei o carro do meu pai dando sopa e liguei a chave. Sem saber como, engatei a ré e foi fogo para parar. Não sabia como. Aprendi a dirigir ao contrário.
– Foi aos 10 anos. Não tinha idade para fazer o “admissão ao ginásio”. Um exame então obrigatório ao ingresso no curso secundário. Aumentaram minha idade. Até hoje sou, oficialmente, um ano mais velho. Quando fui casar deu problema, a certidão de nascimento era diferente do batistério.
– Por volta dos 11 anos, no carnaval, meu pai me deu um vidro de lança perfume. Saí em um caminhão cheio de gente e despejei todo o conteúdo do vidro em uma menina. Ela me olhava e eu esvaziava o vidro, sem trocarmos uma palavra. O vidro secou e eu mudo fiquei.
– Aos 12 anos comprei uma bola e fiz um time de futebol. Fiquei na reserva. Acabei com o time.
– Com treze anos já era encrenqueiro. Um professor era um pé no saco e a maioria da turma não gostava dele. Na hora do recreio, juntamos areia e fizemos um simulacro de seu corpo em cima da grande mesa da sala de aula. Quando ele chegou, esbravejou e todos rimos. Ele deixou a turma.
– Aos 13 anos apaixonei-me por uma moça mais velha. Ela foi a uma festa à noite e eu esperei que o dia amanhecesse para brigar.
– Tinha um parente bispo que, vez por outra, me convidava para viajar com ele. Um dia chegamos a um convento, onde serviram uma merenda reforçada. Ele me chamou ao canto e disse: Encha os bolsos com o que você puder. Bispo não pode, mas perdoa.
– Nessa época, 13 anos, tive um surto de fé fora do comum. Queria entrar no seminário para ser padre. Meu parente, bispo, pediu que um padre amigo conversasse comigo. Batemos um longo papo e ele sugeriu que eu passasse uns meses rezando para confirmar minha fé. Deu no que deu.
– Aos 14 anos, véspera do Dia das Mães, fiz um discurso infame no colégio. Ganhei o apelido de “João Mamãe”.
– Aos 16 anos fazia política estudantil e gostava dos congressos para escrever dedicatórias nas pastas de papelão das colegas. Recebia delas, em contrapartida, muitas frases feitas, a exemplo de: “o essencial é invisível aos olhos” ou “tu és eternamente responsável por aquele que cativas”. Antoine Saint-Exupery e “O Pequeno Príncipe” estavam na moda. Antes das misses.
Tudo isto foi já na segunda metade deste século que está por terminar e parece tão distante, como se o hoje caçoasse do passado.
João Soares Neto,
escritor
CRÔNICA PUBLICADA NO DIÁRIO DO NORDESTE EM 21/11/1999.
LUSTOSEX
Lá estávamos nós na fila, vendo o primogênito do “Seu Costa” e de “Dona Dolores” espalhar a sensibilidade, a mordacidade e a gentileza que se amalgam em sua personalidade.
Terno azul, camisa branca, gravata importada, cabelos aparados, óculos graves e aquele bigode latino que criou para espantar a timidez e lhe dar o ar da sisudez que não tem, embora cultive.
Não era uma noite de autógrafos, era uma festa de benquerença, de reencontros e de reminiscências entre o autor e muitos de seus personagens políticos, de amigos e do dia- a -dia de sua vida que se transformou em um triângulo afetivo: Sobral, Fortaleza e Brasília. Peguem um mapa do Brasil e vejam se não dá um triângulo, não um equilátero, mas um isósceles, pois um dos vértices desse triângulo parece ser o seu centro gravitacional.
Esse menino tímido que, desde cedo, bisbilhotava o viver dos outros com a argúcia do futuro contador de estórias, estava ali declarando, de público, ter atingido a sexagidade, se é que esta palavra existe ( caso contrário, fica a sugestão para o próximo Aurélio). E a declarava com a verve e o gostoso “non sense” com que mistura suas múltiplas vidas nas cidades que escolheu para viver e amar e a sua permanência triunfal em Paris, quando os filhos lhe passavam “quinau” em seu francês pouco Sartreano.
Soares Feitosa, esse cearense que mostrou a possibilidade de ser técnico, empresário e intelectual em uma só pessoa, nos dá um puxão com “as orelhas” que escreveu no “Como me tornei Sexagenário”. Claro, profundo e com a simplicidade que só os que sabem ler podem ter. Digo isto e provo. Cito o Feitosa em questão: “Poucos têm o dom. Lustosa da Costa tem. Sob prosa leve, um senso de humor à inglesa, a capacidade de rir em primeiro de si mesmo, e – as cartas, o epistolar… onde parece escrever para a eternidade. Pinçar, eis a essência do escrito lustoseano nesse mar de banalidades”.
Para não dizer que também não pincei nesse mar de palavras alguma coisa, mostrarei o lado “tímido sex” do autor, revelando, com a sua forma peculiar, cinco dos seus muitos encontros-desencontros amorosos. Vamos a eles? 01.“Também conheci uma moça gordinha, do interior, de pele macia como a carteira de plástico com que me presenteou. Foi um namoro que não se consumou apesar do mimo”. 02. “Anos depois, barba feita, coração por fazer, amei. E amando, gastei a sola dos sapatos, muitas vezes por dia, pela rua Joaquim Ribeiro, na esperança de avistá-la à janela”. 03. “Fui acometido de esperanças violentas e desesperos mortais. Até que veio o não”. 04. “A essa época, namorei Maria Helena, que era jovem e virgem como acontecia àquele tempo”. 05. “O sexo não era risonho nem franco. A moçada de hoje, criada com a tranqüilidade da pílula e o conforto dos motéis, precisa saber que, naquele tempo, não havia nem uma coisa nem outra”.
Muito mais teria. Vou ficando por aqui, pois o espaço é curto – e o Bilas teima em editá-lo com esse tipo de letra que faz a alegria dos oculistas – citando o próprio Lustosa: “escrever, para mim, é compulsão. Escrever me libertou da timidez. Escrever me pôs em contato com o mundo o que nem sempre é fácil, oralmente”.
João Soares Neto,
escritor
CRÔNICA PUBLICADA NO DIÁRIO DO NORDESTE EM 28/11/1999.
CAPISTRANO, POR QUEM E PARA QUEM NÃO O CONHECE
João Soares Neto, ocupante da cadeira Capistrano de Abreu na Academia Fortalezense de Letras.
Diz Gabriel Garcia Márquez que “um escritor já nasce escritor, nasce com o dom e a vocação, precisando apenas aprender a escrever”. Capistrano dizia que “aprender a escrever é aprender a ler”, especialmente para ele, historiador, que parte da leitura crítica de livros, textos, traduções e documentos e os persegue em uma busca sem fim, com um estilo que faz inveja. Historia como se fizesse uma longa crônica, um ensaio, um romance e há trechos até que são poesias, plenos de belas imagens e profundos encantos.
José Aurélio Saraiva Câmara, um de seus biógrafos, diz com propriedade: “Descrever uma vida como a de Capistrano de Abreu é enfrentar um seríssimo tropeço: o paradoxo que representa a humildade do homem ante a majestade da obra; a timidez e a indiferença do operário face a audácia e à afirmação granítica do trabalho realizado. Na sua história, o homem diz pouco e a obra diz tudo.”
Tenho consciência disso. Falta-me maior intimidade com a sua obra. Sou curioso e o conhecimento não tem dono, mas neófito sou em admirá-lo. Não vejo em mim autoridade para descrever a vida, tampouco a obra, pois além do embasamento que não tenho, some-se a isso o exíguo tempo de menos de uma semana, sem prejuízo dos meus outros afazeres, em que fui gentilmente compelido por esta Academia Fortalezense de Letras a escrever este relato.
Sabem com que credenciais? A qualidade única de ocupante da cadeira que tem Capistrano como patrono. Louvo-me da aversão declarada de Capistrano às academias e sociedades a que não quis pertencer para ter a certeza de que, na dimensão em que ele estiver, não se ocupará de dar atenção ao que aqui será brevemente mal dito.
As comemorações dos 150 anos de nascimento de João Capistrano de Abreu ecoam por todo o Brasil. No Ceará houve um calendário oportunamente conduzido pela Secretaria de Cultura, universidades, Prefeitura de Maranguape e um apreciável número de artigos e ensaios nos jornais de Fortaleza. A propósito, compulsando a memória do Jornal “O Povo” de 1953, pude observar que a Prefeitura de Fortaleza lançou um concurso público sobre a vida e a obra de Capistrano por seu centenário. Apenas um candidato concorreu, Pedro Gomes de Matos.
Fosse hoje, certamente, dezenas o fariam. De qualquer modo, não é mais necessário pedir vênia aos meus pares, pois declaro pública a minha incapacidade de cumprir com brilho a missão que, se juízo tivesse, não teria aceitado. Este trabalho foi feito apenas com amor, pois como dizia o próprio Capistrano: “As obras de amor são as únicas que pagam o sacrifício”. Vamos, pois, ao sacrifício.
No último dia 23 deste mês de outubro de 2003 fez 150 anos que João Capistrano de Abreu, filho de Antônia e Joaquim Honório de Abreu, nasceu na Ladeira Grande, no sítio Columinjuba, Maranguape e de lá partiria para ser, provavelmente, o maior historiador brasileiro.
De família simples, solitário, crítico, irônico e taciturno, foi sempre maior do que os colégios onde estudou: o Colégio de Educandos (onde hoje fica o Colégio da Imaculada Conceição), que abrigava meninos pobres; o Ateneu Cearense, o Seminário da Prainha, de onde foi desligado por seu ceticismo mordaz e, especialmente, por não ser vocacionado para padre. Posteriormente, já aos 18 anos, foi reprovado quando dos preparatórios para a Faculdade de Direito do Recife.
Foi reprovado nos preparatórios porque seu aprendizado não se cingia ao conteúdo programático estabelecido para quem desejasse ser advogado, mas já se misturava em Recife aos intelectuais Silvio Romero, Joaquim Nabuco, Tomás Pompeu, Tobias Barreto, Rocha Lima e outros. Já se iniciava na leitura de Stuart Mill, Spencer, Taine e Buckle e aprendia latim, inglês e francês. Voltou para Columinjuba, por conta da carta trocada entre o correspondente em Recife e seu pai, Jerônimo Honório.
Debaixo de repreensões, foi para o cabo de uma enxada como um cabloco qualquer, em meio a um alambique para destilar cachaça, um engenho de açúcar e rapadura e a bolandeira que transformava a mandioca em farinha. Durou pouco esse tempo. Inquieto, desobediente, sabia que seu destino nada tinha a ver com a casa paterna. Engajou-se, em seguida, em movimentos literários e culturais de Fortaleza quando escreveu “Perfis Juvenis”, que era, na verdade, dois ensaios sobre a poesia de Junqueira Freire e Casimiro de Abreu, publicados em edições sucessivas no “Maranguapense”, jornal recém criado em Maranguape.
Foi nessa época que retomou os contatos com Tomás Pompeu, João Lopes e Xilderico de Farias, momento em que eclodia em Fortaleza uma agitação literária chamada jocosamente de “Academia Francesa” que reunia jovens quase imberbes.
Capistrano, que nem aos 20 chegara, associava-se a Araripe Júnior, João Lopes, Rocha Lima e Tomás Pompeu que, igualmente, iriam criar uma escola noturna – A Escola Popular – que objetivava educar operários, ensinando-lhes, como registrou o jornal A Constituição, de 02 de junho de 1874: “A escola noturna popular, além das aulas de primeiras letras, gramática, francês, inglês, geografia e aritmética, que começaram a funcionar, abrirá espaço para uma série de conferências do gênero das que estão fazendo na Corte com tanta aceitação
Fundaram também o jornal Fraternidade, de origem maçônica e inspiração positivista, que pretendia ser arauto de um movimento libertário contra a religiosidade do clero e dos fiéis, apregoada pelo jornal A Tribuna Católica.
É provável que a figura admirada e já então mítica de José de Alencar, ido e vivido na Corte, que chegara doente e alquebrado à Fortaleza em meados de 1874, tenha lhe dado o alento que faltava para deixar o Ceará.
Capistrano, aos 21 anos, tinha os pés na província e os sonhos na Corte, onde precisava beber os conhecimentos que o transformariam no grande historiador que foi. De Alencar se aproximou e ganhou o respeito. Rodolfo Teófilo, em O Ateneu Cearense, narra esse encontro: “A impressão que teve o consagrado homem de letras e político, foi a que se pode ter de um caboclo matuto. Começaram a conversar e, no fim de alguns minutos, Alencar, com grande admiração, viu que ali não estava um simples sertanejo, porém um erudito.”
Era efervescência demais para uma terra aquietada e pobre. Arrumou as trouxas, pediu a benção ao pai, de quem divergia no pensar e agir, pegou o vapor Guará no Porto de Fortaleza, em 12 de abril de 1875, chegando ao Rio de Janeiro antes de completar 22 anos. Seria José de Alencar quem abriria as portas do Rio para Capistrano.
A partir daí é que explode a grandeza autodidata de Capistrano que admitia ser súdito do Império, mas não abria mão de ser, ao mesmo tempo, um cidadão brasileiro. É assim que José de Alencar apresenta Capistrano: “Esse moço, que já é fácil e elegante escritor, aspira ao estágio da imprensa desta Corte. Creio eu que, além de granjear nele um prestante colaborador, teria o jornalismo fluminense a fortuna de franquear a um homem do futuro o caminho da glória, que lhe estão atribuindo acidentes mínimos.”
Os caminhos da sua vida nunca foram fáceis, apesar das relações tão procuradas na Corte. Seu primeiro trabalho no Rio foi na Livraria Garnier como simples resenhador de livros por ela editados. É provável que começasse aí o seu conhecimento com os intelectuais que admirava e com os jornais para os quais remetia as resenhas. Em 1876 passou a morar e a lecionar português e francês no Colégio Aquino, um emergente estabelecimento que pretendia, entre outras coisas, preparar jovens para os cursos superiores.
Sua vida como redator-jornalista no Rio se inicia em 1879 na Gazeta de Notícias. Já em 1882, Valentim Magalhães, na seção Tipos e Tipões, de A Gazetinha, escreve sobre o jornalista Capistrano: “(…) quem seja aquele rapaz forte, de estatura meã, grosso de tronco, de cabeça um tanto cúbica, dessas que vêm bradando aos olhos da gente: ‘eu sou do norte’, de pescoço atlético, olhos pequeninos, piscos, míopes, escandalosamente míopes; trajando escuro com filosófico descuido, chapéu raso de que sobejam sobre a fronte cabelos pretos, ninguém sabe ou desconfia sequer quem seja ele, quando se esgueira rente à parede, cabeça levemente à banda, com o seu passo miudinho e ligeiro(…)(…) Pois esse rapaz é o Capistrano de Abreu, a cabeça mais ilustrada, mais pensadora, mais ‘curvada’ ao trabalho de quantos funcionam no escritório da Gazeta( …).”
Nesse mesmo ano de 79 fez concurso para oficial da Biblioteca Nacional, um misto de burocrata, bibliotecário e ledor de livros. Era o que sempre sonhara. Foi classificado em primeiro lugar, nomeado em 09 de agosto, e, a partir de então, começaria a consolidar a sua carreira de historiador.
Seriam transformadas em marca-páginas da história suas incursões brilhantes como crítico ou ensaísta literário. Por outro lado, o seu grande sonho profissional era ser professor do Colégio Pedro II, mantido pelo Império. E como nunca perdeu a sua veia mordaz, mesmo antes de fazer o concurso e ser aprovado, já criticava o ensino de História do colégio onde pretendia ensinar. Mesmo sabendo que o prof. Matoso Maia seria, certamente, examinador de sua futura banca, critica, genericamente, o seu livro “Historia do Brasil”. Matoso Maia lhe pede para identificar os erros. Ao que ele responde, dizendo: ”Não poder satisfazê-lo, entre outros motivos, porque muito provavelmente ainda nos havemos de encontrar frente a frente e reservamos para então o prazer um pouco malicioso de dar-lhe alguns quinaus.”
Tomava forma o grande historiador com ênfase na historiografia, que vem a ser a arte de escrever a história. Segundo José Honório Rodrigues, quando da morte do historiador Francisco Adolfo de Varnhagen, em necrológio que publicou no Jornal do Comércio, Capistrano mostrou: “m modelo de estudo sobre o mestre e o primeiro trabalho historiográfico, exemplar pelo espírito crítico, a orientação metodológica, o domínio filosófico.”
Casou, em 1881, com Maria José de Castro Fonseca, filha de um Almirante, a quem dera aulas particulares, particulares até demais, como se infere de carta sua a Assis Brasil: “Casei-me a 30 de março, isto é, dois meses antes do que esperava. Ainda não tinha casa pronta, nem podia demorar o casamento sem que sobreviessem obstáculos que poderiam ser insuperáveis.”
Desse casamento que durou apenas onze anos, pela morte de Maria José de febre puerperal, nasceram cinco filhos: Honorina, Adriano, Fernando, Henrique e Matilde. Os que merecem registros mais significativos em sua vasta correspondência são: a filha Honorina que viria a se tornar, em 10 de janeiro de 1911, contra a sua vontade e para sua profunda tristeza, a freira carmelita Maria José de Jesus, beatificada pela Igreja Católica e Fernando, a quem chamava de Abril, por ter nascido nesse mês e cuja morte prematura, de pneumonia dupla, em 24 de outubro de 1918, o fez baquear profundamente, aumentando a sua casmurrice e infelicidade.
Em 1883, mediante concurso em que superou outros quatro candidatos, entre eles, Franklin Távora, consegue realizar o sonho de ser professor do Colégio Pedro II, de Corografia, que vem a ser o estudo ou descrição geográfica de um país, região, província ou município e História do Brasil, com a tese Descobrimento do Brasil e seu Desenvolvimento no Século XVI. Em 1889 foi excluída do currículo escolar do Colégio Pedro II a cadeira de Historia do Brasil. Capistrano se recusa a ensinar História Geral, denuncia o fato e é posto em disponibilidade.
Nesse mesmo ano de 89 publica o seu primeiro livro: O Descobrimento do Brasil, escrito em 40 dias. A sua grande obra, Capítulos da História Colonial (1500-1800), foi produzida em um ano, sendo patrocinada pelo Centro Industrial do Brasil e publicada em 1907. É nela que fica realçada a sua capacidade de sintetizar, que o consagrou definitivamente como historiador e não um mero coletor de acontecimentos, nomes e datas.
Capistrano, expoente que era do Movimento de 1870, que tinha como pressuposto o cientificismo ou método crítico com três elementos básicos: testemunha visual, caráter lógico do relato e coerência entre o texto e realidade, renovou os métodos de investigação científica e de interpretação historiográfica brasileira da época, partindo do determinismo sociológico – positivista que foi e deixou de ser – para, em seguida, descobrir a essência do que regia a sociedade colonial.Fica claro que sua análise da sociedade brasileira, lastreada na influência teórica da teoria realista alemã de Leopold Von Ramke, enfoca o estudo do ambiente, dos fatores corográficos, da miscigenação da raça, dos aspectos econômicos e psicológicos,sempre realçando a conquista do interior pelo brasileiro mestiço.
Para ele, já mostrando a sua face republicana, o destaque não é o português ou reinol, mas a capacidade do povo e das pessoas comuns, sem expressão política, na procura de uma identidade nacional ao longo de nossa evolução histórica, deixando, cada vez mais patente, a desimportância do Rei, vice-rei, governadores e dos heróis.O povo é o sujeito da história.
Por outro lado, fugindo do geral e indo para o particular, visualiza com a sua ótica corográfica a cidade do Rio de Janeiro, que o abrigou por 53 anos, permitindo antever, como se urbanista, sociólogo e antropólogo fosse, com quase um século de antecedência, o caos em que viriam a se tornar as favelas nos morros cariocas.
Capistrano denuncia isso em carta a João Lúcio de Azevedo, em 11 de novembro de 1921: “Muita gente é amiga dos morros e cita em seu favor a opinião dos estrangeiros que aqui passam indiferentes ao que deixam. Sou adversário convicto: enquanto não for arrasada a maioria, morros são compartimentos estanques que impedem a circulação social.”
Autodidata, lendo muito mais que escrevia. Adorava ler na rede e para onde viajava pelo Brasil – quase sempre para casa de amigos – a levava sem medo e pudor. Curioso e inquieto, não sossegou até aprender a língua alemã, além do latim, francês e inglês que já manejava.
Sem nunca ter saído do Brasil, ao longo de seus 74 anos, incompletos, idade avançadíssima para a média de vida do brasileiro de sua época, foi se tornando cada vez mais culto, fechado em si mesmo, a ponto de se auto intitular, a partir de 1925, de João Ninguém, sem nunca perder a capacidade de escrever de forma simples, elegante e perspicaz, especialmente na sua vasta e dispersa correspondência aos amigos.
Sua correspondência, organizada pacientemente por José Honório Rodrigues em três volumes, é, segundo alguns, a sua segunda grande obra. É ela uma demonstração de apreço aos amigos, conhecimento profundo do que falava, firmeza de ideias, capacidade de rir de si mesmo, falar das perdas familiares, suas doenças, achaques e da caturra melancolia, que o acompanhou ate à morte em sua casa, em Botafogo, Rio, em 13 de agosto de 1927, rodeado de amigos verdadeiros que, em féretro a, pé, o levaram ao Cemitério.
Provavelmente, a melhor descrição de Capistrano de Abreu tenha sido feita por seu amigo João Pandiá Calógeras, um dos fundadores da Sociedade Capistrano de Abreu, em discurso no Instituto Histórico e Geográfico, logo após a sua morte. Diz Calógeras: “Rude, em sua terrível franqueza; hostil a todo o pedantismo; irremediavelmente indignado contra toda futilidade vaidosa, detestava hipócritas. Sincero admirador das mentalidades superiores era destituído de toda inveja. Indulgente, quando explicável a falta por um motivo mais alto, por amor à inteligência ou à bondade perdoava deslizes de menor alcance. Intratável em questões de honra, de lealdade e de afeição, não admitia atenuantes para o delinquente.”
Este perfil poderia ser resumido em uma frase do próprio Capistrano: “Eu proporia que se substituíssem todos os artigos da Constituição por: Artigo Único – Todo brasileiro fica obrigado a ter vergonha cara”. Mas, adocemos a sua mordacidade com duas frases suas:“Todo artista tem um germe original que é a base e o ‘substratum’ de seu talento” e, “Nunca pensei que eu pudesse morrer”.
Na verdade, não morreu. Transformou-se.
As citações estão contidas na Bibliografia consultada:
– AMARAL, Eduardo Lúcio Guilherme, Correspondência Cordial – Capistrano de Abreu e Guilherme Studart, Fortaleza, Museu do Ceará, Sec. Cultura do Ce, 2003.
– BUARQUE, Virginia A. Castro. Escrita Singular – Capistrano de Abreu e Madre Maria José, Fortaleza, Museu do Ceará, Sec. Cultura do Ce, 2003.
– CÂMARA, José Aurélio Saraiva. Capistrano de Abreu, UFC, 1999.
– Modernos Descobrimentos, Capistrano de Abreu Descobridor [on line]. Rio de Janeiro, PUC, Disponível: www.modernosdescobrimentos.inf.br [22.10.2003].
– RODRIGUES, José Honório (Org.). Correspondência – Obras de Capistrano de Abreu, 03 volumes, Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira, 1977.
– SÁEZ, Oscar Calavia. A Morte e o Sumiço de Capistrano de Abreu [on line]. Florianópolis UFSC. Disponível: www.cfh.ufsc.br [26.10.2003]