Lá estávamos nós na fila, vendo o primogênito do “Seu Costa” e de “Dona Dolores” espalhar a sensibilidade, a mordacidade e a gentileza que se amalgam em sua personalidade.
Terno azul, camisa branca, gravata importada, cabelos aparados, óculos graves e aquele bigode latino que criou para espantar a timidez e lhe dar o ar da sisudez que não tem, embora cultive.
Não era uma noite de autógrafos, era uma festa de benquerença, de reencontros e de reminiscências entre o autor e muitos de seus personagens políticos, de amigos e do dia- a -dia de sua vida que se transformou em um triângulo afetivo: Sobral, Fortaleza e Brasília. Peguem um mapa do Brasil e vejam se não dá um triângulo, não um equilátero, mas um isósceles, pois um dos vértices desse triângulo parece ser o seu centro gravitacional.
Esse menino tímido que, desde cedo, bisbilhotava o viver dos outros com a argúcia do futuro contador de estórias, estava ali declarando, de público, ter atingido a sexagidade, se é que esta palavra existe ( caso contrário, fica a sugestão para o próximo Aurélio). E a declarava com a verve e o gostoso “non sense” com que mistura suas múltiplas vidas nas cidades que escolheu para viver e amar e a sua permanência triunfal em Paris, quando os filhos lhe passavam “quinau” em seu francês pouco Sartreano.
Soares Feitosa, esse cearense que mostrou a possibilidade de ser técnico, empresário e intelectual em uma só pessoa, nos dá um puxão com “as orelhas” que escreveu no “Como me tornei Sexagenário”. Claro, profundo e com a simplicidade que só os que sabem ler podem ter. Digo isto e provo. Cito o Feitosa em questão: “Poucos têm o dom. Lustosa da Costa tem. Sob prosa leve, um senso de humor à inglesa, a capacidade de rir em primeiro de si mesmo, e – as cartas, o epistolar… onde parece escrever para a eternidade. Pinçar, eis a essência do escrito lustoseano nesse mar de banalidades”.
Para não dizer que também não pincei nesse mar de palavras alguma coisa, mostrarei o lado “tímido sex” do autor, revelando, com a sua forma peculiar, cinco dos seus muitos encontros-desencontros amorosos. Vamos a eles? 01.“Também conheci uma moça gordinha, do interior, de pele macia como a carteira de plástico com que me presenteou. Foi um namoro que não se consumou apesar do mimo”. 02. “Anos depois, barba feita, coração por fazer, amei. E amando, gastei a sola dos sapatos, muitas vezes por dia, pela rua Joaquim Ribeiro, na esperança de avistá-la à janela”. 03. “Fui acometido de esperanças violentas e desesperos mortais. Até que veio o não”. 04. “A essa época, namorei Maria Helena, que era jovem e virgem como acontecia àquele tempo”. 05. “O sexo não era risonho nem franco. A moçada de hoje, criada com a tranqüilidade da pílula e o conforto dos motéis, precisa saber que, naquele tempo, não havia nem uma coisa nem outra”.
Muito mais teria. Vou ficando por aqui, pois o espaço é curto – e o Bilas teima em editá-lo com esse tipo de letra que faz a alegria dos oculistas – citando o próprio Lustosa: “escrever, para mim, é compulsão. Escrever me libertou da timidez. Escrever me pôs em contato com o mundo o que nem sempre é fácil, oralmente”.
João Soares Neto,
escritor
CRÔNICA PUBLICADA NO DIÁRIO DO NORDESTE EM 28/11/1999.
ENFARTE E FAMÍLIA
Um amigo de velhas datas liga pedindo uma hora para conversar comigo. Como esse amigo sabe que não revelarei seu nome, nem sob tortura, posso me permitir escrever, em linhas gerais, sobre o teor da nossa conversa. Aliás, eu submeti este artigo à sua análise.
Um dia, dirigindo o seu carro após o trabalho, veio aquela dor violenta entre as costas e o peito e ele teve força de chegar a um hospital. Saiu de lá dez dias após com três pontes de safena, recomendações sobre mudança de estilo de vida e uma porção de remédios a tomar todos os dias, pelo resto da vida. Chamou a mulher e disse desejar repensar sua vida. Ela chorou abraçada a ele e ficou calada. Ficou mais 20 dias em casa. Os dias não passavam, a televisão cansava e a cabeça não parava de martelar questões sem respostas.
Esse meu amigo desejava trocar ideias sobre ele, sua empresa e seus filhos. Descobrira-se mortal. Reuniu a mulher e os filhos para uma conversa. Disse que ia tirar o time de campo e queria saber a opinião de cada um. Foi um Deus nos acuda. Segundo ele, os filhos ficaram apavorados, pois ainda não estavam preparados para comandar a empresa, feita com muito trabalho, dedicação e renúncia.
Por essas dúvidas ele me procurou e conversamos mais do tempo combinado. Relembramos fatos, demos algumas risadas e até algumas lágrimas rolaram, talvez pela certeza da finitude e da nossa incapacidade de administrar situações complexas.
Lembrei – me, rindo comigo mesmo, da condição de “conselheiro” e me descobri sem quase nenhuma capacidade de ajudá-lo. Preferi que, nós dois, entendêssemos os dramas na sua cabeça e analisássemos o que, igualmente, poderiam pensar – naquela situação – os seus filhos. Uma coisa estava definida para ele: queria escolher alguém capaz para dirigir os negócios no lugar dele. Ele ficaria apenas dando as diretrizes. A quem escolher? Falou, com carinho, sobre os filhos, quase todos formados, mas nenhum quisera fazer mestrado ou ganhar experiência trabalhando em outras empresas. “Não tinham estrada” e não conheciam, no duro, o chão de fábrica. Viviam do que a empresa lhes pagava e não esperavam, para tão rápido, a possibilidade de um deles ter de assumir, para valer, a direção do negócio. Talvez, por culpa do meu amigo, não eram ainda trabalhadores profissionais, de sol a sol, não conheciam o seu atual nível de “stress”, nem amargaram anos de lutas e as noites em claro antes de tomar decisões.
A partir de suas informações, fizemos o perfil de cada um e, além de todos os problemas, como sombras, as figuras de nora e genro apareceram. A coisa complicava e eu sem saber mais o que dizer. Por fim, lhe sugeri optar por alguém de fora da família, com características e habilidades semelhantes às que ele acreditava ter ou queria para a empresa, neste mundo competitivo, não morrer. Ele coçou a cabeça e pediu um tempo para pensar.
Há três dias recebi um telefonema dele. Contratara um profissional de excelente nível, na faixa dos 30 anos, ganhando quase o mesmo que seus filhos que ficaram resmungando e ele bateu firme na mesa. Estava decidido. Nenhum assumiria, continuariam fazendo o que sabiam e ainda era pouco. Hoje, ele viaja, pela primeira vez, à Europa. Boa viagem.
João Soares Neto,
escritor
CRÔNICA PUBLICADA NO DIÁRIO DO NORDESTE EM 05/12/1999.
A PARANÓIA DO 2000
Está todo mundo contando. Faltam 24 dias para o ano 2000. E daí? O que é que este tal ano dois mil vai mudar na sua vida se você mesmo não resolver mudar? Não é o tempo, se considerarmos que um ano é um período de tempo, que muda você. O que muda você é o uso que faz do tempo. Então, cara prepare-se para mudar daqui a 25 dias ou tudo vai continuar na mesma, sem que o calendário possa ser usado a seu favor.
Um doidinho, Albert Einstein, na primeira metade deste século, andou desmanchando o que Isaac Newton dizia há tempos: o tempo é absoluto. Não é. O tempo é relativo, segundo o Albert. E para entender tudo isso é preciso ficar sabendo que não existem só três dimensões: altura, comprimento e largura, formando o espaço. Além dessas três existe o tempo, que é uma quarta dimensão. Pois voltando ao que interessa, nós vivemos em função do espaço e do tempo e é por tal razão que digo: se não soubermos aproveitar o tempo, de nada valerá o espaço, isto é, o mundinho que escolhemos para nós.
Pode parecer confuso o que disse acima, mas não é. Se tiver dúvida, releia.
Você precisa administrar o seu tempo, fazer as coisas acontecerem, ao invés de ficar na janela olhando o mundo rodar. Mova-se, traduza-se em movimento, ação e descubra em si e nos outros o sentido de sua vida. Vá tentando e consegue. Não desanime se o seu atual espaço não lhe for favorável, respire fundo e lembre-se que o mundo todo é o seu espaço, só o tempo é finito, em sua dimensão.
O que estou querendo lhe passar é que é preciso limpar a sujeira que o tempo deixou em seu corpo e na sua mente. Remova as estruturas superadas que só servem de obstáculo às mudanças que você ensaia fazer e não faz. Sai dessa, se você acha que o 2000 é milagroso, vai rodar. Quem tem que obrar o milagre é você, sacudindo os seus poréns e entretantos. Deixe de procurar resposta no tempo e no espaço, a resposta está, usando o que disse Taiguara, no “universo do teu corpo”. Mexa-se e descubra se pode mandar para a cucuia o que lhe está enchendo o saco há tempos. Aproveite a desculpa do ano 2000 para romper alguns preconceitos que você mesmo criou. Dane-se o que os outros pensam ou você vai ficar ai esperando por milagre?
Daqui a alguns dias você será uma pessoa do século passado – se você acredita que o século termina em 1999, mas isto é outra estória – e se não ficar atento, independente da sua idade, poderá parecer antigo, ultrapassado. Mostre que não é antigo, ligue-se no espaço e no tempo e desligue-se das pessoas chatas que perturbaram no “século passado”. Assuma um compromisso e tente o usar o tempo como aliado e o seu espaço parecerá mais livre e despido de obstáculos para encontrar a felicidade que está aí no “universo do seu corpo” e da sua alma.
João Soares Neto,
escritor
CRÔNICA PUBLICADA NO DIÁRIO DO NORDESTE EM 12/12/1999.
PSIQUÉ
Neste mês de dezembro todos recebem cartões, brindes, presentes e convites. Boa parte deles peca pela falta de imaginação e alguns atentam contra a sensibilidade. Um dos convites que recebi me chamou a atenção. Foi um de formatura em psicologia.
Por que me chamou a atenção? Pela linda gravura de William Adolphe Bouguereau, designada como “Invading Cupid’s realm” ou invadindo o reino de Cupido. Uma linda mulher semi-nua cercada de anjos parece quebrar barreiras.
Foi isso o que o convite me passou: quebrar barreiras. Além dessa abertura inusitada, procurou não puxar saco de ninguém escolhendo os pais como “patronos” e os mestres como “paraninfos”. E não fica só nisso. Conta o Mito de Eros e Psiqué. Vejam um dos trechos: “Psiqué penetrou o palácio e, a partir de então, foi servida por uma multidão de Vozes, que lhe atendiam mesmo os desejos não formulados. Naquela mesma noite da chegada da princesa, Eros, sem se deixar ver, fez de Psiqué sua mulher, mas, antes do nascer do sol, desapareceu rápida e misteriosamente”.
Ainda fugindo das citações convencionais, o convite contém citações que transcrevo para conhecimento de vocês.
De Ruy Barbosa, aos pais (Se um dia já homem feito e realizado, sentires que a terra cede a teus pés e que não há ninguém para te estender a mão, esquece a tua maturidade, passa pela tua mocidade, volta à tua infância e balbucia entre lágrimas e esperança as últimas palavras que te restarão na alma: meu pai, minha mãe).
De Fernando Pessoa, aos professores (Mestre, meu mestre! Na mágoa quotidiana das matemáticas do ser, Eu escrevo de lado como um pó de todos os ventos, Ergo as mãos para ti, que estás longe, tão longe de mim!).
Mário Quintana, aos clientes (… até que um dia, por astúcia ou por acaso, depois de quase todos os enganos, ele descobriu a porta do labirinto. Nada de ir tateando os muros como um cego. Nada de muros. Seus passos tinham – enfim! – a liberdade de traçar seus próprios labirintos).
Como mensagem final, Manuel Bandeira (Assim eu quereria o meu último poema. Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais. Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas. Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume. A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos. A paixão dos suicidas que se matam sem explicação).
Não é um charme?
João Soares Neto,
escritor
CRÔNICA PUBLICADA NO DIÁRIO DO NORDESTE EM 19/12/1999.
MEUS HOMENS
Faltando 06 dias para o ano de 1999 terminar e com essa estória da mídia publicar listas disso e daquilo, pois não é que me lembrei de fazer a lista dos cinco homens com os quais mantive contato pessoal, mesmo que eventual, e que ficaram no meu “Top of the mind”, ou no topo das minhas lembranças.
Da vida universitária dois nomes surgiram cristalinos: Heribaldo Costa e Parsifal Barroso. Heribaldo era professor de Introdução à Ciência do Direito e a ele devo parte do pouco que aprendi de filosofia e lógica. Austero, obrigava os alunos a usar paletó em suas aulas e teve a coragem de dar mais de cem zeros em uma prova semestral. Houve uma campanha forte contra ele e a aposentadoria o acolheu.
Parsifal era Governador do Estado e dava aulas de Ciência Política com a simplicidade de um padre e a fluência e o saber que Deus lhe deu. Falava pausado, era enfático e apaixonado pelo conhecimento. Vez por outra, me pedia carona para ir deixá-lo em palácio.
Vão me chamar de presumido (faz mal não), pois vou citar três nomes consagrados mundialmente. Em 1962 passei num concurso e fui fazer um curso de verão na Universidade de Harvard. O coordenador do curso era Henry Kissinger, que viria a ser, em seguida, Secretário de Estado e o segundo homem mais importante dos Estados Unidos, apesar de ser judeu alemão. Nariz adunco, óculos grossos, voz com sotaque, grave e rouco, ficava fulo da vida quando se falava em imperialismo americano e, uma vez, nos perguntou sobre “o imperialismo paulista”.
Nessa mesma viagem fomos a Washington para uma visita a várias autoridades. Eu, como fazia direito, integrei um pequeno grupo que teve a sorte de conversar com Bob Kennedy, então Ministro da Justiça. Seu gabinete era amplo, poltronas de couro e um grande quadro abstrato na parede principal. Ele era jovem, absolutamente descontraído e cordial. Em cima do seu birô repousava um capacete amassado de soldado e a seus pés dormitava um enorme cão. Na hora da informalidade, perguntou se sabíamos a razão daquele capacete estar ali. É claro que não sabíamos. Disse ser o símbolo da luta pelos direitos civis dos negros. Brincalhão, indagou quem entendia de pintura para explicar o seu quadro abstrato. Muitos palpites, nenhum acerto. Ele riu e falou que era uma chuva de papel picado quando das comemorações da eleição de seu irmão John.
De paletó e gravata, todos ficamos nos jardins internos da Casa Branca, ali onde os presidentes dão entrevistas. De repente, lá vem John Kennedy. Louro, queimado de sol e paletó azul marinho. Falou de sua “aliança para o progresso”, perguntou quantos futuros presidentes do Brasil sairiam dali e trocou palavras amenas com alguns de nós. A mim, por exemplo, perguntou de que região eu era. Nervoso, troquei nordeste por noroeste. Quatro meses após ele seria assassinado em Dallas.
Feliz Ano Novo para todos.
João Soares Neto,
escritor
CRÔNICA PUBLICADA NO DIÁRIO DO NORDESTE EM 26/12/1999.
NÓS E OS GRUPOS
Assisti há alguns dias a uma entrevista do sociólogo Domenico De Masi concedida ao programa “Roda Viva”, da TV Cultura de São Paulo. Posteriormente, li uma entrevista do mesmo De Masi à revista Exame. Para concluir, descobri, entre os meus livros, “A Emoção e a Regra”, uma coletânea de ensaios sobre grupos criativos na Europa entre 1850 e 1950, organizado por Domenico De Masi e editado pela José Olympio.
Para quem nunca ouviu falar em Domenico De Masi eu direi que é italiano, 61 anos, sociólogo do trabalho que, além de ser professor universitário em Roma, vive pelo mundo afora a dar palestras. Quem estiver interessado em ideias novas, com um excelente respaldo cultural e estético, é bom conhecer o trabalho de De Masi.
Por ora, para justificar o título do artigo, ficarei apenas no livro “A Emoção e a Regra”, especificamente no ensaio feito por Emma Gori sobre o grupo de Bloomsbury. Nesse ensaio de 40 páginas se pode conhecer o surgimento, o desenvolvimento e o papel transformador de um punhado de pessoas à frente de seu tempo. Desse grupo que se reunia no bairro de Bloomsbury, na cidade de Londres, nos primeiros anos deste século, fazia parte gente de todos os matizes culturais que se reunia pelo prazer de estar junto e, ao mesmo tempo, trocar ideias sobre o que estava acontecendo no mundo.
Virginia Woolf (escritora famosa e mulher de comportamento liberado), Leonard Woolf (editor e marido de Virgínia), Clive Bell (negociante de arte e marido de Vanessa, irmã de Virgínia), Duncan Grant (pintor), Vanessa Bell, Maynard Keynes (economista famoso em todo o mundo) e tantos outros eram os integrantes desse grupo diletante que se reunia sob dois nomes. Um deles era a Sociedade dos Apóstolos(Apostles Society) e outro, pasmem vocês, Sociedade da Meia-noite (Midnight Society) que se reunia às sextas-feiras à meia noite.
Ora, perguntarão vocês, o que é que essa lenga-lenga tem a ver com os dias de hoje e o precioso tempo que gastamos para ler este artigo? Simples. Estou tentando demonstrar que, se há quase um século, pessoas diferentes se reuniam para trocar ideias, essa carência ainda hoje persiste. O corre-corre que nos estressa e o isolamento em nossos trabalhos demonstra a necessidade de nos reunirmos em grupos para deixar que surjam coletivos criativos. Para isso existem os clubes de serviços, as associações de classe, os clubes sociais, as entidades culturais e as científicas. Além dessas organizações formais, existem os grupos informais de amigos (como o de Bloomsbury) das mais diversas profissões e visões que se gratificam em jogar conversa fora. Na realidade, não estão jogando conversa fora, pois cada um relata as suas experiências e fantasias, tornando a discussão rica e proveitosa.
Da minha parte eu faço grande fé em grupos. Sejam formais ou informais. Desde adolescente tenho participado dos mais variados grupos. Atualmente, sou diretor, conselheiro e membro de várias entidades. Além disso, tenho meus grupos informais de amigos. Um deles tem mais de 25 anos.
Permaneço até o instante em que a relação entre os pares é espontânea, instigante e gratificante. Na hora em que a mera obrigatoriedade, a mesmice e a futrica surgem, eu dou um tempo ou saio. Se você faz parte de grupos, meus parabéns. Você está utilizando um antioxidante para o corpo e para a mente. Se você ainda vive isolado, descubra a sua turma. Não se preocupe se alguém ou alguns não gostarem muito de você, isso pode ser prova de que você não é o que eles são. De minha parte, nunca vi uma pessoa que fosse unanimidade ser ou fazer alguma coisa.
João Soares Neto,
escritor
CRÔNICA PUBLICADA NO DIÁRIO DO NORDESTE EM 11/04/1999.
ESCREVENDO MICROCONTOS
O conto é um dos gêneros literários que mais me atraem. É claro que gosto de romances, ensaios e poesias. Mas, o conto tem seus encantos. Por ser breve e ter um final, quase sempre, surpreendente, ele agrada e, muitas vezes, choca.. Segundo Alexandre Severino, autor de “The Brazilian Short Stories: Reflections of a Changing Society”, “o conto… com sua capacidade segmentada – a apreensão ilógica e inexplicada do momento atual da verdade – é a forma literária mais apropriada para a descrição da sociedade brasileira contemporânea”. Eu me arriscaria a dizer que não só da sociedade brasileira.
Uma condição do conto é ser curto, mas alguns autores teimam em escrevê-lo longo, quase um romance. A partir dessa premissa de que o conto deve ser curto, resolvi me questionar: e por quê não curtíssimo, um mero parágrafo que reflita um momento, uma história, uma fantasia, uma loucura, um sabor picante ou cáustico?
Passei então a escrever o que chamei de microcontos. Já escrevi quase cem deles. Mostrei ao Juarez Leitão e ao Pedro Henrique Saraiva Leão, intelectuais de carteirinha acadêmica, e eles disseram ter gostado. Julguem vocês.
Como a ideia é nova, é preciso que o leitor leia o microconto (MC) com atenção.
MC01. A música era forte e o som aumentava. Desistiu de matricular-se em uma escola de surdos e foi atropelado pelo carro silencioso.
MC02. O bandido olhou para o corpo morto e coçou a cabeça. Era o seu segundo engano. Precisa usar óculos.
MC03. No escuro do cinema sentiu a mão sobre sua coxa. Continuou olhando firme para a tela. Gostara do imprevisto. No final do filme, outro imprevisto. Era seu marido.
MC04. Lera Machado, Eça, Drummond, Trevisan, Rubião e só lhe perguntavam se conhecia Brida, de Paulo Coelho. Suicidou-se.
MC05. Londres, meia noite. Olhou para o Big Ben e viu a Lady Diana pendurada nos ponteiros do relógio e as badaladas não soaram. Meia noite e um minuto.
MC06. Subiu a escada do avião rezando. Sentou, afivelou o cinto, tomou o calmante e dormiu. Sonhou que estava dormindo e nunca mais acordou.
MC07. Era engenheiro de decisões concretas. Resolveria todas as dívidas. Caiu no caminhão betoneira. A viúva recebeu o seguro, não pagou as dívidas e casou com o dono da betoneira.
MC08. Aquela vontade no corpo e mulher nenhuma. Alô, é do Disksexo? Sim. Mande uma. Desculpe, filiamo-nos a CUT, estamos em greve.
MC09. Correu atrás do pivete que lhe roubara o relógio. Depois de duas quadras o alcançou. Tomou o relógio, olhou as horas. Devolveu-o ao pivete e saiu correndo. Estava atrasado.
MC10. A mulher lhe obedecia, estava em um spa para emagrecer. Na data marcada, não voltou. Fugiu com um gordo.
MC11. A primeira equipe do FMI que chegou ao hotel foi logo abrindo as agendas e telefonando para as meninas indicadas pelo Ministro. Queriam acertar as contas atrasadas.
MC12. Era um novo rico perfeito. Depois que colocou as dentaduras superior e inferior, passou a usar flúor.
Apreciaria receber comentários dos leitores a respeito dos microcontos (e-mail jsn@planos.com.br).
João Soares Neto,
escritor
CRÔNICA PUBLICADA NO DIÁRIO DO NORDESTE EM 25/04/1999.
KOSOVO E DENVER
Um leitor pede-me para escrever sobre Kosovo. Não sei nada sobre guerras. O que aprendi no curso de oficiais da reserva, já esqueci. Mesmo que ainda lembrasse, de nada serviria na análise dessa idiotia que levou quase 20 países a se reunirem, sob o manto da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), para atacar a Iugoslávia com mísseis e bombas, com o pretexto de serem delegados de uma Europa civilizada e democrática, atuarem contra o inimigo ditador e perverso.
Na ótica do Presidente americano, Bill Clinton, “nossa aliança quer por fim à crise, ao sofrimento dos kosovares, às provações suportadas por uma população sérvia forçada a se envolver numa luta por um líder cínico que despreza seu bem-estar, que esconde dela a verdade sobre o que está acontecendo em Kosovo”. E arremata: “A tragédia de Kosovo deve e precisa incentivar os esforços dos países da Otan, que deverão prolongar-se por algum tempo, para dar suporte ao aprofundamento da democracia e tolerância e à integração étnica e religiosa entre as nações do sudeste europeu”.
Por outro lado, o Presidente iugoslavo, Slobodan Milosevic, não tem o direito de promover matanças e discriminações em nome de uma pureza étnica. É outro idiota. As atrocidades por ele cometidas devem ter o repúdio da comunidade internacional, mas isso não dá o direito a ninguém de fomentar uma nova guerra sob o pretexto de uma intervenção humanística.
Serão os americanos que choram o deplorável e brutal atentado à uma escola em Denver os mesmos que aplaudem a insensatez dos mísseis? Será que os mortos americanos são mais mortos que os mortos da Iugoslávia, sejam sérvios ou kosovares?
A leitura verdadeira de uma guerra, como a que está sendo travada, passa pelo poderoso “lobby” da indústria armamentista, apátrida e sem escrúpulos, pela necessidade de demonstração de poderio militar e de vigilância continental que a OTAN faz na Europa, sob os olhares submissos da Organização das Nações Unidas.
Enquanto isso, na África, milhares de angolanos morrem há anos em luta fratricida e ninguém se interessa ou faz nada. Será que a ONU é cega ou não vê a guerra civil em Angola por que os combatentes são negros e pobres? Igualmente, lá na Ásia, exatamente no Laos, na planície de Jars, se desenvolve outra guerra interna com outros milhares de vítimas. Ora, no Laos eles são asiáticos e pobres, parece dizer a indiferente ONU.
Não há lógica nessa aberração de Kosovo, a chamada “Albright’s War”, como referência à Secretária de Estado americano, Madeleine Albright, e nenhum político, militar ou comentarista de jornal ou televisão consegue dourar a pílula dessa guerra tecnológica, que se dizia asséptica e instantânea.
Noam Chomsky, ativista político americano, é um dos críticos da guerra de Kosovo. Segundo ele, “existe um regime de lei internacional e ordem internacional ao qual todos têm a obrigação de se sujeitar, baseado na Carta e nas resoluções subsequentes da ONU e nas decisões da Corte Internacional de Justiça… Se você não consegue imaginar nenhum meio de obedecer àquele princípio elementar, então não faça nada. Sempre haverá meios que poderão ser considerados. A diplomacia e as negociações nunca serão esgotadas”.
Quem achar que sabe quando e como vai acabar esse conflito pode estar fazendo um arriscado exercício de futurologia. A insensatez dos homens armados e empoleirados em seus aviões e helicópteros é comandada por homens engravatados que sempre afirmam estar lutando pela paz. Quem acreditar nessa história merece um prêmio: uma passagem de ida para Kosovo, com opcionais para Angola e Laos, com tudo pago, até a mortalha.
João Soares Neto,
escritor
CRÔNICA PUBLICADA NO DIÁRIO DO NORDESTE EM 02/05/1999.
LISBOA E BARCELONA
Estou voltando de Barcelona. Foi o cansaço quem me mandou viajar. A corda estava esticada demais e resolvi dar uma paradinha de uns dias. Nada mais que isso. Direto, rápido e revigorante.
Primeiro foi Lisboa. Tenho uma relação muito amistosa com Lisboa. A primeira vez que vim ainda era tempo de Salazar, o velho ditador. Apaixonei-me pelo jeito meio pachorrento da Lisboa da década de 60. Os bondes, o fado, a velha Alfama, as ruas estreitas, a estufa fria, o Museu dos Coches, a Universidade de Lisboa, a Fundação Gulbekian, o Mosteiro dos Jerônimos, a praça Marquês de Pombal, onde, por uma dessas coincidências da vida encontrei agora dando autógrafos, como um autor comum, na Feira do Livro de Lisboa, José Saramago. Revi o Bairro Alto e o Rio Tejo de tantos versos e muita prosa. Comi a boa comida portuguesa que parece sempre, ter sido feita por uma velha tia gorda. Foi em Lisboa que conheci Victor Manuel Ribeiro, um português gentil que nos serviu de cicerone e veio dar com os costados aí no Brasil e passou a trabalhar comigo até a sua morte.
Hoje, Lisboa e Portugal, por extensão, tentam se ajustar às regras da Comunidade Europeia. Correm contra o atraso que os indicadores sociais demonstravam. Portugal é um país em transformação, uma viva ebulição, tentando promover o turismo, criar novas indústrias e serviços para os patrícios que saíam para empregos subalternos na França, Inglaterra e Alemanha e mandavam cheques mensais para suas recatadas mulheres, semi-analfabetas com suas roupas pudicas a cuidar dos miúdos.
Durante o período obscuro da ditadura de Franco, especialmente na Guerra Civil Espanhola, Barcelona, como catalã, se constituiu o núcleo central da resistência. Hoje é uma cidade onde os turistas se misturam aos nativos apressados no exercício de suas atividades, especialmente na metalurgia de transformação, na química fina e no imenso parque gráfico. Falar apenas na Costa do Sol e na Costa Brava como rotas turísticas que tem Barcelona como centro irradiador é ser simplista. Barcelona é muito mais do que se pode dizer em uma mera visita aos seus diversos museus, onde se destacam Miró e Picasso, a avenida La Rambla, o charmoso bairro Barceloneta, a Vila Olímpica, suas belíssimas igrejas, destacando-se a da Sagrada Família com a irreverência artística de Gaudí. O novo complexo turístico de Maremagnum com os seus restaurantes, bares e o passeio marítimo, é uma espécie de avenida à beira mar, frente ao mar Mediterrâneo.
Nesta primavera europeia, no meio de pessoas de uma língua assemelhada à nossa, embora martelado pelas ligações internacionais que teimam em reavivar os problemas e a cobrar minha volta, eu tento, em meio a “tapas” e “paellas”, recarregar minhas baterias jogando conversa fora, por exemplo, com uma tradutora americana, um editor espanhol de origem basca, um empresário brasileiro e um mestrando de comércio exterior.
Tudo isso com o bom propósito de reoxigenar-me e tentar assimilar as diatribes do nosso Brasil, tão rico e, paradoxalmente, tão pobre. É bom vir, mesmo com limitação de tempo. Melhor mesmo é voltar, pois em nossa terra é que tudo faz sentido, mesmo quando não há explicação lógica. O Brasil é como aquela pessoa a quem amamos muito, apesar de conhecer seus defeitos. Bendito Brasil.
João Soares Neto,
escritor
CRÔNICA PUBLICADA NO DIÁRIO DO NORDESTE EM 06/05/1999.
A NOVA MÃE
As coisas do mundo mudam muito rápidas. Fui criado no tempo da mãe tempo integral. Os filhos e o marido eram o seu universo. E o restante, orações. Mulheres jovens reuniam os filhos à seis da tarde para “tirar” o terço. Mulheres aguardando o marido para mandar servir o jantar e, se o marido atrasava muito, corriam para o quarto e choravam quietas para os filhos não ouvirem. Mulheres, muitas delas envelhecidas aos 40 anos, se comprazendo em manter os filhos limpos, sadios e estudando. Mulheres “tementes a Deus”, com muitos filhos, empregadas ou irmãs e tias ajudando a cuidar da casa, o marido reinando absoluto. Provedor e ditador.
Hoje, as mães são fruto de uma revolução feita pelas próprias mulheres, sem a ajuda dos homens, nestas últimas décadas, à custa de muito sacrifício, de batalhas públicas e privadas assegurando-lhes uma nova dimensão.
As mães de hoje são outras, enquanto cuidam do filho insone fazem uma tarefa do seu trabalho ou arriscam o olho em um livro ou numa televisão multifacetada abrindo-lhe as portas do mundo, sejam cafonices, pieguices, devaneios ou a informação em tempo real.
Essas novas mulheres são corajosas, fortes, diligentes, mesclam o dever com o prazer e multiplicam seu tempo para ser mãe, trabalhadora, dona de casa, cuidar do corpo e prender o marido. Esse bicho danado e teimoso querendo criar asas, embora seja um mero bípede e, muitas vezes, não sabe nem onde pisa.
A nova mãe não é um estereótipo, é um ser mutante tentando conviver num mundo novo, lado a lado, com um parceiro incapaz de esconder suas fraquezas, pois visíveis. Divide despesas, faz orçamentos, leva filhos a médicos e dentistas, cozinha ou compra congelados, copia modelos de vestidos, aproveita liquidações, estuda e/ou trabalha fora, briga por vaga em escola gratuita ou por mensalidades mais baixas e defende seus pontos de vista nas reuniões de pais (e mães) e mestres, integra uma turma de amigas, possui a liberdade oferecida por um celular e teme o futuro. É um ser estressado como se fora um homem, trabalhando, às vezes, mais que ele e se quer bonita, alegre e saudável.
Ela só deixa de trabalhar nos últimos dias da gravidez, vai para o parto já com uma cinta pronta para recompor a silhueta e 24 horas após está em casa administrando o caos. Decide se vai usar o Diu, ligar as trompas ou pedir ao marido para fazer vasectomia.
Não há um novo homem pronto e acabado para essa nova mulher e mãe. Os homens ainda não se deram conta de sua mãe não servir mais de modelo e os édipos estão sendo sepultados, mesmo à força.
Atônitos, despreparados, procuram em seus pares as explicações sonegadas por suas mentes. Aos poucos, passam a ver sua mulher como alguém exatamente igual a ele e isso lhes amedronta, pois sabem do que são capazes. Se eles são, elas também. Do receio talvez surja o respeito oxigenador dessa relação ainda difusa e confusa tendente a se alicerçar na independência mútua e, paradoxalmente, venha a ser o elo faltante dessa nova convivência.
A essa nova mãe, fruto de todos os acontecimentos deste final de século, nos cabe homenagear como alguém emergente do meio de tantos desencontros entre pessoas ainda não aptas a trilhar o caminho dessa estrada libertária e amedrontadora, por ser desconhecida.
João Soares Neto,
escritor
CRÔNICA PUBLICADA NO DIÁRIO DO NORDESTE EM 09/05/1999.