Nasci em Fortaleza em meio […]
PRESENTE DE NATAL
Neste Natal vá ao encontro dos que você ama, sem medo e com o passo firme dos que ainda acreditam na força do amor.
CAPISTRANO, 170 ANOS
João Soares Neto, ex-ocupante da cadeira Capistrano de Abreu na Academia Fortalezense de Letras, da Academia Cearense de Letras, do Instituto do Ceará e da Associação Brasileira de Imprensa
Dizia Gabriel Garcia Márquez que “um escritor já nasce escritor, nasce com o dom e a vocação, precisando apenas aprender a escrever”.
Capistrano falava que “aprender a escrever é aprender a ler”, especialmente para ele, historiador, que parte da leitura crítica de livros, textos, traduções, documentos e os persegue em uma busca sem fim, com um estilo que faz inveja.
História como se fizesse uma longa crônica, um ensaio, um romance e há trechos até que são poesias, plenos de belas imagens e profundos encantos.
José Aurélio Saraiva Câmara, um de seus biógrafos, diz com propriedade: “Descrever uma vida como a de Capistrano de Abreu é enfrentar um seríssimo tropeço: o paradoxo que representa a humildade do homem ante a majestade da obra; a timidez e a indiferença do operário face a audácia e à afirmação granítica do trabalho realizado. Na sua história, o homem diz pouco e a obra
Louvo-me da aversão declarada de Capistrano às academias e as sociedades a que não quis pertencer para ter a certeza de que, na dimensão em que ele estiver, não se ocupará de dar atenção ao que aqui será descrito.
As comemorações dos 170 anos de nascimento de João Capistrano de Abreu ecoam, pouco visíveis, por todo o Brasil.
No Ceará, nos 150 anos, houve um calendário oportunamente conduzido pela Secretaria de Cultura, universidades, Prefeitura de Maranguape e um apreciável número de artigos e ensaios nos jornais de Fortaleza. A propósito, compulsando a memória do Jornal “O Povo” de 1953, pude observar que a Prefeitura de Fortaleza lançou um concurso público sobre a vida e a obra de Capistrano por seu centenário. Apenas um candidato concorreu, Pedro Gomes de Matos.
Fosse hoje, certamente, alguns o fariam. De qualquer modo, não é mais necessário pedir vênia aos meus pares, pois declaro pública a minha incapacidade de cumprir com brilho a missão que, se juízo tivesse, não teria aceitado.
Esse trabalho foi feito apenas com amor, pois como dizia o próprio Capistrano: “As obras de amor são as únicas que pagam o sacrifício”. Vamos, pois, ao sacrifício.
No dia 23 do mês de outubro de 2003 fez 150 anos que João Capistrano de Abreu, filho de Antônia e Joaquim Honório de Abreu. Nasceu na Ladeira Grande, no sítio Columinjuba, Maranguape e de lá partiria para ser, provavelmente, o maior historiador brasileiro.
De família simples, solitário, crítico, irônico e taciturno, foi sempre maior do que os colégios onde estudou: o Colégio de Educandos (onde hoje fica o Colégio da Imaculada Conceição), que abrigava meninos pobres; o Ateneu Cearense, o Seminário da Prainha, de onde foi desligado por seu ceticismo mordaz e, especialmente, por não ser vocacionado para padre. Posteriormente, já aos 18 anos, foi reprovado quando dos preparatórios para a Faculdade de Direito do Recife.
Foi reprovado porque seu aprendizado não se cingia ao conteúdo programático estabelecido para quem desejasse ser advogado, mas já se misturava em Recife aos intelectuais Silvio Romero, Joaquim Nabuco, Tomás Pompeu, Tobias Barreto, Rocha Lima e outros. Já se iniciava na leitura de Stuart Mill, Spencer, Taine e Buckle e aprendia latim, inglês e francês. Voltou para Columinjuba, por conta da carta trocada entre o seu tutor/correspondente em Recife e seu pai, Jerônimo Honório.
Debaixo de repreensões, foi para o cabo de enxada como caboclo qualquer, em meio a um alambique para destilar cachaça, um engenho de açúcar, rapadura e a bolandeira que transformava a mandioca em farinha. Durou pouco esse tempo. Inquieto, desobediente, sabia que seu destino nada tinha a ver com a casa paterna. Engajou-se, em seguida, em movimentos literários e culturais de Fortaleza quando escreveu “Perfis Juvenis”, que eram, na verdade, dois ensaios sobre a poesia de Junqueira Freire e Casimiro de Abreu, publicados em edições sucessivas no “Maranguapense”, jornal recém criado na pequena cidade de Maranguape.
Foi nessa época que retomou os contatos com Tomás Pompeu, João Lopes e Xilderico de Farias, momento em que eclodia em Fortaleza uma agitação literária chamada jocosamente de “Academia Francesa” a reunir jovens quase imberbes.
Capistrano, que nem aos 20 chegara, associava-se a Araripe Júnior, João Lopes, Rocha Lima e Tomás Pompeu que, igualmente, iriam criar uma escola noturna – A Escola Popular – que objetivava educar operários, ensinando-lhes, como registrou o jornal A Constituição, de 02 de junho de 1874: “A escola noturna popular, além das aulas de primeiras letras, gramática, francês, inglês, geografia e aritmética, que começaram a funcionar, abrirá espaço para uma série de conferências do gênero das que estão fazendo na Corte com tanta aceitação.
Fundaram também o jornal Fraternidade, de origem maçônica e inspiração positivista, que pretendia ser arauto de um movimento libertário contra a religiosidade do clero e dos fiéis, apregoado pelo jornal A Tribuna Católica.
É provável que a figura admirada e já então mítica de José de Alencar, ido e vivido na Corte, que chegara doente e alquebrado a Fortaleza em meados de 1874, tenha lhe dado o alento que faltava para deixar o Ceará.
Capistrano, aos 21 anos, tinha os pés na província e os sonhos na Corte, onde precisava beber os conhecimentos que o transformariam no grande historiador que foi.
De Alencar se aproximou e ganhou o respeito. Rodolfo Teófilo, em O Ateneu Cearense, narra esse encontro: “A impressão que teve o consagrado homem de letras e político, foi a que se pode ter de um caboclo matuto. Começaram a conversar e, no fim de alguns minutos, Alencar, com grande admiração, viu que ali não estava um simples sertanejo, porém um erudito.”
Era efervescência demais para uma terra aquietada e pobre. Arrumou as trouxas, pediu a benção ao pai, de quem divergia no pensar e agir, pegou o vapor Guará no Porto de Fortaleza, em 12 de abril de 1875, chegando ao Rio de Janeiro antes de completar 22 anos. Seria José de Alencar quem abriria as portas do Rio para Capistrano.
A partir daí é que explode a grandeza autodidata de Capistrano que admitia ser súdito do Império, mas não abria mão de ser, ao mesmo tempo, um cidadão brasileiro. É assim que José de Alencar apresenta Capistrano: “Esse moço, que já é fácil e elegante escritor, aspira ao estágio da imprensa desta Corte. Creio eu que, além de granjear nele um prestante colaborador, teria o jornalismo fluminense a fortuna de franquear a um homem do futuro o caminho da glória, que lhe estão atribuindo acidentes mínimos.”
Os caminhos da sua vida nunca foram fáceis, apesar das relações tão procuradas na Corte. Seu primeiro trabalho no Rio foi na Livraria Garnier como simples resenhador de livros por ela editados. É provável que começasse aí o seu conhecimento com os intelectuais que admirava e com os jornais para os quais remetia as resenhas. Em 1876 passou a morar e a lecionar português e francês no Colégio Aquino, um emergente estabelecimento que pretendia, entre outras coisas, preparar jovens para os cursos superiores.
Sua vida como redator-jornalista no Rio se inicia em 1879 na Gazeta de Notícias. Já em 1882, Valentim Magalhães, na seção Tipos e Tipões, de A Gazetinha, escreve sobre o jornalista Capistrano: “(…) quem seja aquele rapaz forte, de estatura meã, grosso de tronco, de cabeça um tanto cúbica, dessas que vêm bradando aos olhos da gente: ‘eu sou do norte’, de pescoço atlético, olhos pequeninos, piscos, míopes, escandalosamente míopes; trajando escuro com filosófico descuido, chapéu raso de que sobejam sobre a fronte cabelos pretos, ninguém sabe ou desconfia sequer quem seja ele, quando se esgueira rente à parede, cabeça levemente à banda, com o seu passo miudinho e ligeiro(…)(…) Pois esse rapaz é o Capistrano de Abreu, a cabeça mais ilustrada, mais pensadora, mais ‘curvada’ ao trabalho de quantos funcionam no escritório da Gazeta( …).”
Nesse mesmo ano de 79 fez concurso para oficial da Biblioteca Nacional, um misto de burocrata, bibliotecário e ledor de livros. Era o que sempre sonhara. Foi classificado em primeiro lugar, nomeado em 09 de agosto, e, a partir de então, começaria a consolidar a sua carreira de historiador.
Seriam transformadas em marca-páginas da história suas incursões brilhantes como crítico ou ensaísta literário. Por outro lado, o seu grande sonho profissional era ser professor do Colégio Pedro II, mantido pelo Império. E como nunca perdeu a sua veia mordaz, mesmo antes de fazer o concurso e ser aprovado, já criticava o ensino de História do colégio onde pretendia ensinar. Mesmo sabendo que o prof. Matoso Maia seria, certamente, examinador de sua futura banca, critica, genericamente, o seu livro “História do Brasil”. Matoso Maia pede-lhe para identificar os erros. Ao que ele responde, dizendo: ”Não poder satisfazê-lo, entre outros motivos, porque muito provavelmente ainda nos havemos de encontrar frente a frente e reservamos para então o prazer um pouco malicioso de dar-lhe alguns quinaus.”
Tomava forma o grande historiador com ênfase na historiografia, que vem a ser a arte de escrever a história. Segundo José Honório Rodrigues, quando da morte do historiador Francisco Adolfo de Varnhagen, em necrológio que publicou no Jornal do Comércio, Capistrano mostrou: “um modelo de estudo sobre o mestre e o primeiro trabalho historiográfico, exemplar pelo espírito crítico, a orientação metodológica, o domínio filosófico.”
Casou, em 1881, com Maria José de Castro Fonseca, filha de um Almirante. A ela dera aulas particulares, particulares até demais, como se infere de carta sua a Assis Brasil: “Casei-me a 30 de março, isto é, dois meses antes do que esperava. Ainda não tinha casa pronta, nem podia demorar o casamento sem que sobreviessem obstáculos que poderiam ser insuperáveis.”
Desse casamento que durou apenas onze anos, pela morte de Maria José de febre puerperal, nasceram cinco filhos: Honorina, Adriano, Fernando, Henrique e Matilde. Os que merecem registros mais significativos em sua vasta correspondência são: a filha Honorina que viria a se tornar, em 10 de janeiro de 1911, contra a sua vontade e para sua profunda tristeza, a freira carmelita Maria José de Jesus, beatificada pela Igreja Católica e Fernando, a quem chamava de Abril, por ter nascido nesse mês e cuja morte prematura, de pneumonia dupla, em 24 de outubro de 1918, o fez baquear profundamente, aumentando a sua casmurrice e infelicidade.
Em 1883, mediante concurso em que superou outros quatro candidatos, entre eles, Franklin Távora, consegue realizar o sonho de ser professor do Colégio Pedro II, de Corografia, que vem a ser o estudo ou descrição geográfica de um país, região, província ou município e História do Brasil, com a tese “Descobrimento do Brasil e seu Desenvolvimento no Século XVI. “
Em 1889 foi excluída do currículo escolar do Colégio Pedro II a cadeira de Historia do Brasil. Capistrano se recusa a ensinar História Geral, denuncia o fato e é posto em disponibilidade.
Nesse mesmo ano de 89 publica o seu primeiro livro: O Descobrimento do Brasil, escrito em 40 dias. A sua grande obra, Capítulos da História Colonial (1500-1800), foi produzida em um ano, sendo patrocinada pelo Centro Industrial do Brasil e publicada em 1907. É nela que fica realçada a sua capacidade de sintetizar, que o consagrou definitivamente como historiador e não um mero coletor de acontecimentos, nomes e datas.
Capistrano, expoente que era do Movimento de 1870, que tinha como pressuposto o cientificismo ou método crítico com três elementos básicos: testemunha visual, caráter lógico do relato e coerência entre o texto e realidade, renovou os métodos de investigação científica e de interpretação historiográfica brasileira da época, partindo do determinismo sociológico – positivista que foi e deixou de ser – para, em seguida, descobrir a essência do que regia a sociedade colonial. Fica claro que sua análise da sociedade brasileira, lastreada na influência teórica da teoria realista alemã de Leopold Von Ramke, enfoca o estudo do ambiente, dos fatores corográficos, da miscigenação da raça, dos aspectos econômicos e psicológicos, sempre realçando a conquista do interior pelo brasileiro mestiço.
Para ele, já mostrando a sua face republicana, o destaque não é o português ou reinol, mas a capacidade do povo e das pessoas comuns, sem expressão política, na procura de uma identidade nacional ao longo de nossa evolução histórica, deixando, cada vez mais patente, a desimportância do Rei, vice-rei, governadores e dos heróis. O povo é o sujeito da história.
Por outro lado, fugindo do geral e indo para o particular, visualiza com a sua ótica corográfica a cidade do Rio de Janeiro, que o abrigou por 53 anos, permitindo antever, como se urbanista, sociólogo e antropólogo fosse, com quase um século de antecedência, o caos em que viriam a se tornar as favelas nos morros cariocas.
Capistrano denuncia isso em carta a João Lúcio de Azevedo, em 11 de novembro de 1921: “Muita gente é amiga dos morros e cita em seu favor a opinião dos estrangeiros que aqui passam indiferentes ao que deixam. Sou adversário convicto: enquanto não for arrasada a maioria, morros são compartimentos estanques que impedem a circulação social.”
Autodidata, lendo muito mais que escrevia. Adorava ler na rede de dormir e para onde viajava pelo Brasil – quase sempre para casa de amigos – a levava sem medo e pudor. Curioso e inquieto, não sossegou até aprender a língua alemã, além do latim, francês e inglês que já manejava.
Sem nunca ter saído do Brasil, ao longo de seus 74 anos, incompletos, idade avançadíssima para a média de vida do brasileiro de sua época, foi se tornando cada vez mais culto, fechado em si mesmo, a ponto de se auto intitular, a partir de 1925, de João Ninguém, sem nunca perder a capacidade de escrever de forma simples, elegante e perspicaz, especialmente na sua vasta e dispersa correspondência aos amigos.
Sua correspondência, organizada pacientemente por José Honório Rodrigues em três volumes, é, segundo alguns, a sua segunda grande obra. É ela uma demonstração de apreço aos amigos, conhecimento profundo do que falava, firmeza de ideias, capacidade de rir de si mesmo, falar das perdas familiares, suas doenças, achaques e da caturra melancolia, que o acompanhou até à morte em sua casa, em Botafogo, Rio, em 13 de agosto de 1927, rodeado de amigos verdadeiros que, em féretro a, pé, o levaram ao Cemitério.
Provavelmente, a melhor descrição de Capistrano de Abreu tenha sido feita por seu amigo João Pandiá Calógeras, um dos fundadores da Sociedade Capistrano de Abreu, em discurso no Instituto Histórico e Geográfico, logo após a sua morte. Diz Calógeras: “Rude, em sua terrível franqueza; hostil a todo o pedantismo; irremediavelmente indignado contra toda futilidade vaidosa, detestava hipócritas. Sincero admirador das mentalidades superiores era destituído de toda inveja. Indulgente, quando explicável a falta por um motivo mais alto, por amor à inteligência ou à bondade perdoava deslizes de menor alcance. Intratável em questões de honra, de lealdade e de afeição, não admitia atenuantes para o delinquente.”
Esse perfil poderia ser resumido em uma frase do próprio Capistrano: “Eu proporia que se substituíssem todos os artigos da Constituição por: Artigo Único – Todo brasileiro fica obrigado a ter vergonha cara”. Mas, adocemos a sua mordacidade com duas frases suas: “Todo artista tem um germe original que é a base e o ‘substratum’ de seu talento” e, “Nunca pensei que eu pudesse morrer”.
Na verdade, não morreu. Transformou-se.
Bibliografia consultada
– AMARAL, Eduardo Lúcio Guilherme, Correspondência Cordial – Capistrano de Abreu e Guilherme Studart, Fortaleza, Museu do Ceará, Sec. Cultura do Ce, 2003.
– BUARQUE, Virginia A. Castro. Escrita Singular – Capistrano de Abreu e Madre Maria José, Fortaleza, Museu do Ceará, Sec. Cultura do Ce, 2003.
– Câmara , José Aurélio Saraiva. Capistrano de Abreu, UFC, 1999.
– Modernos Descobrimentos, Capistrano de Abreu Descobridor [on line]. Rio de Janeiro, PUC, Disponível: www.modernosdescobrimentos.inf.br
– RODRIGUES, José Honório (Org.). Correspondência – Obras de Capistrano de Abreu, 03 volumes, Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira, 1977.
– SÁEZ, Oscar Calavia. A Morte e o Sumiço de Capistrano de Abreu [on line]. Florianópolis UFSC. Disponível: www.cfh.ufsc.br
INTENÇÃO, PROPÓSITO E REALIDADE
Ninguém desconhece existir boa intenção e firme propósito do Governo Lula em resolver, entre muitos outros, os problemas gravíssimos da fome, do desemprego, da assistência médica pública e dos desequilíbrios regionais. Lula tem fé de ofício nessas áreas. Saiu de Pernambuco em um Pau-de-arara, amargou fome com a família, viu a primeira mulher morrer por falta de assistência médica e foi um sindicalista proeminente no combate ao desemprego.Vivia na São Paulo dos pobres, sem participar da São Paulo dos ricos que hoje são os seus mais recentes amigos de infância. Conhece, de prova provada, o que é desequilíbrio regional. Lula tem a formação de vida nitidamente paulista, mas trás na sua história genética a dor e a angústia do nordestino retirante.
Ninguém desconhece que grande parte dos atuais ministros de Lula não tinha experiência provada na gestão de graves e complexos problemas a necessitarem de soluções urgentes e equilibradas. Isto não quer dizer que as pessoas escolhidas não possam adquirir experiência, mas é preciso saber que a palavra experiência deriva de experimentar ou experienciar. Em outras palavras: leva tempo.
Por outro lado, o Brasil entregue à Lula e sua equipe era e é ainda um país dividido em Capitanias na mão de lobbistas, políticos e partidos praticando pouco do que falam, especialmente diante de microfones ou em entrevistas públicas. Acresça-se a isso, a existência de uma burocracia pesada, cara e pouco eficaz, sem entender ou não querendo entender a necessidade da agilidade no serviço público. Os agentes públicos precisam ficar cientes de que todos os brasileiros, direta ou indiretamente, são contribuintes e os verdadeiros pagadores de seus salários. Ao entrar em uma repartição qualquer brasileiro se sente aturdido e desestimulado pela morosidade das informações e, muitas vezes, pela indiferença ao que acredita ser legítimo pleitear. Todo brasileiro é cliente da máquina estatal e por tal razão merece ser bem tratado, independe do que ganha, da roupa que veste ou da função que exerce.
Já ouvimos falar de várias reformas, especialmente as previdenciária (para diminuir despesas) e a tributária (para gerar mais receitas). Não se falou, contudo, da necessidade de uma reforma administrativa ou gerencial para que tudo funcione. Isto me faz lembrar das intenções e propósitos de Hélio Beltrão e Paulo Lustosa que pretendiam desburocratizar o Brasil. A realidade mostrou que foram vencidos pela máquina kafkaniana da burocracia. Está na hora de mudar.
João Soares Neto,
administrador e escritor
SARAMINDA E O SARNEY SENSUAL
O nosso comum amigo, César Asfor Rocha, surpreendeu-me no Natal passado com a sua encomendada, mas especial dedicatória (“Ao João Soares, que tem a paixão pela letras, o abraço do José Sarney) no livro “Saraminda”.
Li-o no dealbar do ano e, passado o processo eleitoral do Senado e pensadas as dores das suas incisões vesiculares, vi-me aprestado a lhe agradecer a gentileza.
Aviso-o que não sou crítico literário. Faço da empresa o meu viver, sem esquecer de tecer sonhos com os sentidos. Perpetro escritos, meras crônicas descompromissadas e publicadas e, guardados estão poemas ainda virgens de outros olhos, pois a auto-censura os enclausura
Além do amigo comum, restam-nos apenas a identidade do Jota e do Esse que emolduram o seu e o meu nome, mas isto é alongar conversa, para a qual não recebi permissão.
Receba, como agradecimento, o que escrevi abaixo, tão isento quanto pode ser um pré- sessentão encantado por Saraminda, nossa amada.
Cordialmente,
João Soares Neto
SARAMINDA E O SARNEY SENSUAL
Saraminda prova que José Sarney não é normal. É preciso ter muito de louco para misturar personagens, beirar a criação de um realismo fantástico (“Você não está morta? Aqui todos morrem e vivem.”) com uma latinidade que o escritor brasileiro não costuma exercer e falar de comida (“Um brochete de rabo de jacaré, frito com banha de anta e conhaque, um hoko e um assado de cochon bois”), moda ( “O vestido tinha a saia comprida, de pregas que caíam da cintura e eram acompanhados pelas dobras até a barra da saia circundada por uma cinta de rendas e de franjas bordadas. Um casaco de elegante corte de sino, repartido em duas abas também rendadas, que desciam como estolas e passavam alongadas além da cintura, ladeadas por duas fileiras de botões cobertos de cetim e pequenos bordados”) e de uma guerra pelo território do Amapá (“acabo de saber que a França perdeu estas terras que agora são do Brasil. Foi uma decisão da Suíça.
Amanhã, só vai haver uma bandeira, a do Brasil”) que não houve entre dois países tão distintos quanto o Brasil e França.
Saraminda prova que José Sarney não é político, pois expõe, mesmo sem querer ou querendo, o seu lado sensual ao descrever como um retratista de pico de pena ou crayon o corpo(“Nela o sangue bretão, judeu, índio, banto misturou-se ao longo dos séculos, concentrou-se nos olhos, afinou os lábios, alongou-lhe o pescoço, deu-lhe sorte e sedução”), a faceirice( “Eu quero que você tenha alegria e felicidade.
Prazer de coisa de amor de gente que se junta… Quero que você receba meu corpo de ouro embrulhado em papel de seda, enrolado em veludo, cheirando a patchuli”), as falas(”Seu Cleto, me trate com respeito. Não sou coisa suja, sou mulher para ser tratada com gosto. Aprecio modos. Entrei na vida mas não sou uma sem-vergonha”) dessa mulher tão simples e paradoxal, como se fora uma personagem vivida pela Sônia Braga dos áureos tempos.
Saraminda prova que José Sarney não é rico. Se o fora não descreveria com tanta paixão a avidez dos garimpeiros, a cobiça(“O garimpo é de uma solidão imensa. Quando a gente olha, parece que não é no mundo. O ouro não tem cheiro. Se tivesse, o homem ia farejar e saberia onde ele está”) e a luxúria(“tive vontade de beijar, beijar com força, ficar deitado nele, mas me controlei , não dei modos para não verem onde estava minha bestitude”)que o ouro( “Não achei que fosse ouro, de tão feia, e pude então compreender que a beleza do ouro está nos homens”.) exerce sobre a razão e o imaginário de pessoas rudes com estéticas comprometidas pelas rugas e as rusgas que terminam em sangue para aplacar a ira dos deuses.
Saraminda atesta que José Sarney não é romancista. É um espécime novo, um poemancista com imagens (“Na casa de sombras, era o remoer da lembrança que alimentava os fantasmas”) e figuras(“Era um brinquedo muito triste esse jogo de gostar”) dignas de um Borgesïï
Saraminda fez enfim, José Sarney calar os que ainda não têm olhos para ver que, além da sua matreirice, da lhaneza, do faro e da capacidade de focar a política, sobram-lhe sentimentos lustrados em palavras ajuntadas em bateias de idéias que brotam como florestas de uma amazônia de encantamentos.
João Soares Neto,
especial para o DN.
CAPISTRANO, POR QUEM E PARA QUEM NÃO O CONHECE
João Soares Neto, ocupante da cadeira Capistrano de Abreu na Academia Fortalezense de Letras.
Diz Gabriel Garcia Márquez que “um escritor já nasce escritor, nasce com o dom e a vocação, precisando apenas aprender a escrever”. Capistrano dizia que “aprender a escrever é aprender a ler”, especialmente para ele, historiador, que parte da leitura crítica de livros, textos, traduções e documentos e os persegue em uma busca sem fim, com um estilo que faz inveja. Historia como se fizesse uma longa crônica, um ensaio, um romance e há trechos até que são poesias, plenos de belas imagens e profundos encantos.
José Aurélio Saraiva Câmara, um de seus biógrafos, diz com propriedade: “Descrever uma vida como a de Capistrano de Abreu é enfrentar um seríssimo tropeço: o paradoxo que representa a humildade do homem ante a majestade da obra; a timidez e a indiferença do operário face a audácia e à afirmação granítica do trabalho realizado. Na sua história, o homem diz pouco e a obra diz tudo.”
Tenho consciência disso. Falta-me maior intimidade com a sua obra. Sou curioso e o conhecimento não tem dono, mas neófito sou em admirá-lo. Não vejo em mim autoridade para descrever a vida, tampouco a obra, pois além do embasamento que não tenho, some-se a isso o exíguo tempo de menos de uma semana, sem prejuízo dos meus outros afazeres, em que fui gentilmente compelido por esta Academia Fortalezense de Letras a escrever este relato.
Sabem com que credenciais? A qualidade única de ocupante da cadeira que tem Capistrano como patrono. Louvo-me da aversão declarada de Capistrano às academias e sociedades a que não quis pertencer para ter a certeza de que, na dimensão em que ele estiver, não se ocupará de dar atenção ao que aqui será brevemente mal dito.
As comemorações dos 150 anos de nascimento de João Capistrano de Abreu ecoam por todo o Brasil. No Ceará houve um calendário oportunamente conduzido pela Secretaria de Cultura, universidades, Prefeitura de Maranguape e um apreciável número de artigos e ensaios nos jornais de Fortaleza. A propósito, compulsando a memória do Jornal “O Povo” de 1953, pude observar que a Prefeitura de Fortaleza lançou um concurso público sobre a vida e a obra de Capistrano por seu centenário. Apenas um candidato concorreu, Pedro Gomes de Matos.
Fosse hoje, certamente, dezenas o fariam. De qualquer modo, não é mais necessário pedir vênia aos meus pares, pois declaro pública a minha incapacidade de cumprir com brilho a missão que, se juízo tivesse, não teria aceitado. Este trabalho foi feito apenas com amor, pois como dizia o próprio Capistrano: “As obras de amor são as únicas que pagam o sacrifício”. Vamos, pois, ao sacrifício.
No último dia 23 deste mês de outubro de 2003 fez 150 anos que João Capistrano de Abreu, filho de Antônia e Joaquim Honório de Abreu, nasceu na Ladeira Grande, no sítio Columinjuba, Maranguape e de lá partiria para ser, provavelmente, o maior historiador brasileiro.
De família simples, solitário, crítico, irônico e taciturno, foi sempre maior do que os colégios onde estudou: o Colégio de Educandos (onde hoje fica o Colégio da Imaculada Conceição), que abrigava meninos pobres; o Ateneu Cearense, o Seminário da Prainha, de onde foi desligado por seu ceticismo mordaz e, especialmente, por não ser vocacionado para padre. Posteriormente, já aos 18 anos, foi reprovado quando dos preparatórios para a Faculdade de Direito do Recife.
Foi reprovado nos preparatórios porque seu aprendizado não se cingia ao conteúdo programático estabelecido para quem desejasse ser advogado, mas já se misturava em Recife aos intelectuais Silvio Romero, Joaquim Nabuco, Tomás Pompeu, Tobias Barreto, Rocha Lima e outros. Já se iniciava na leitura de Stuart Mill, Spencer, Taine e Buckle e aprendia latim, inglês e francês. Voltou para Columinjuba, por conta da carta trocada entre o correspondente em Recife e seu pai, Jerônimo Honório.
Debaixo de repreensões, foi para o cabo de uma enxada como um cabloco qualquer, em meio a um alambique para destilar cachaça, um engenho de açúcar e rapadura e a bolandeira que transformava a mandioca em farinha. Durou pouco esse tempo. Inquieto, desobediente, sabia que seu destino nada tinha a ver com a casa paterna. Engajou-se, em seguida, em movimentos literários e culturais de Fortaleza quando escreveu “Perfis Juvenis”, que era, na verdade, dois ensaios sobre a poesia de Junqueira Freire e Casimiro de Abreu, publicados em edições sucessivas no “Maranguapense”, jornal recém criado em Maranguape.
Foi nessa época que retomou os contatos com Tomás Pompeu, João Lopes e Xilderico de Farias, momento em que eclodia em Fortaleza uma agitação literária chamada jocosamente de “Academia Francesa” que reunia jovens quase imberbes.
Capistrano, que nem aos 20 chegara, associava-se a Araripe Júnior, João Lopes, Rocha Lima e Tomás Pompeu que, igualmente, iriam criar uma escola noturna – A Escola Popular – que objetivava educar operários, ensinando-lhes, como registrou o jornal A Constituição, de 02 de junho de 1874: “A escola noturna popular, além das aulas de primeiras letras, gramática, francês, inglês, geografia e aritmética, que começaram a funcionar, abrirá espaço para uma série de conferências do gênero das que estão fazendo na Corte com tanta aceitação
Fundaram também o jornal Fraternidade, de origem maçônica e inspiração positivista, que pretendia ser arauto de um movimento libertário contra a religiosidade do clero e dos fiéis, apregoada pelo jornal A Tribuna Católica.
É provável que a figura admirada e já então mítica de José de Alencar, ido e vivido na Corte, que chegara doente e alquebrado à Fortaleza em meados de 1874, tenha lhe dado o alento que faltava para deixar o Ceará.
Capistrano, aos 21 anos, tinha os pés na província e os sonhos na Corte, onde precisava beber os conhecimentos que o transformariam no grande historiador que foi. De Alencar se aproximou e ganhou o respeito. Rodolfo Teófilo, em O Ateneu Cearense, narra esse encontro: “A impressão que teve o consagrado homem de letras e político, foi a que se pode ter de um caboclo matuto. Começaram a conversar e, no fim de alguns minutos, Alencar, com grande admiração, viu que ali não estava um simples sertanejo, porém um erudito.”
Era efervescência demais para uma terra aquietada e pobre. Arrumou as trouxas, pediu a benção ao pai, de quem divergia no pensar e agir, pegou o vapor Guará no Porto de Fortaleza, em 12 de abril de 1875, chegando ao Rio de Janeiro antes de completar 22 anos. Seria José de Alencar quem abriria as portas do Rio para Capistrano.
A partir daí é que explode a grandeza autodidata de Capistrano que admitia ser súdito do Império, mas não abria mão de ser, ao mesmo tempo, um cidadão brasileiro. É assim que José de Alencar apresenta Capistrano: “Esse moço, que já é fácil e elegante escritor, aspira ao estágio da imprensa desta Corte. Creio eu que, além de granjear nele um prestante colaborador, teria o jornalismo fluminense a fortuna de franquear a um homem do futuro o caminho da glória, que lhe estão atribuindo acidentes mínimos.”
Os caminhos da sua vida nunca foram fáceis, apesar das relações tão procuradas na Corte. Seu primeiro trabalho no Rio foi na Livraria Garnier como simples resenhador de livros por ela editados. É provável que começasse aí o seu conhecimento com os intelectuais que admirava e com os jornais para os quais remetia as resenhas. Em 1876 passou a morar e a lecionar português e francês no Colégio Aquino, um emergente estabelecimento que pretendia, entre outras coisas, preparar jovens para os cursos superiores.
Sua vida como redator-jornalista no Rio se inicia em 1879 na Gazeta de Notícias. Já em 1882, Valentim Magalhães, na seção Tipos e Tipões, de A Gazetinha, escreve sobre o jornalista Capistrano: “(…) quem seja aquele rapaz forte, de estatura meã, grosso de tronco, de cabeça um tanto cúbica, dessas que vêm bradando aos olhos da gente: ‘eu sou do norte’, de pescoço atlético, olhos pequeninos, piscos, míopes, escandalosamente míopes; trajando escuro com filosófico descuido, chapéu raso de que sobejam sobre a fronte cabelos pretos, ninguém sabe ou desconfia sequer quem seja ele, quando se esgueira rente à parede, cabeça levemente à banda, com o seu passo miudinho e ligeiro(…)(…) Pois esse rapaz é o Capistrano de Abreu, a cabeça mais ilustrada, mais pensadora, mais ‘curvada’ ao trabalho de quantos funcionam no escritório da Gazeta( …).”
Nesse mesmo ano de 79 fez concurso para oficial da Biblioteca Nacional, um misto de burocrata, bibliotecário e ledor de livros. Era o que sempre sonhara. Foi classificado em primeiro lugar, nomeado em 09 de agosto, e, a partir de então, começaria a consolidar a sua carreira de historiador.
Seriam transformadas em marca-páginas da história suas incursões brilhantes como crítico ou ensaísta literário. Por outro lado, o seu grande sonho profissional era ser professor do Colégio Pedro II, mantido pelo Império. E como nunca perdeu a sua veia mordaz, mesmo antes de fazer o concurso e ser aprovado, já criticava o ensino de História do colégio onde pretendia ensinar. Mesmo sabendo que o prof. Matoso Maia seria, certamente, examinador de sua futura banca, critica, genericamente, o seu livro “Historia do Brasil”. Matoso Maia lhe pede para identificar os erros. Ao que ele responde, dizendo: ”Não poder satisfazê-lo, entre outros motivos, porque muito provavelmente ainda nos havemos de encontrar frente a frente e reservamos para então o prazer um pouco malicioso de dar-lhe alguns quinaus.”
Tomava forma o grande historiador com ênfase na historiografia, que vem a ser a arte de escrever a história. Segundo José Honório Rodrigues, quando da morte do historiador Francisco Adolfo de Varnhagen, em necrológio que publicou no Jornal do Comércio, Capistrano mostrou: “m modelo de estudo sobre o mestre e o primeiro trabalho historiográfico, exemplar pelo espírito crítico, a orientação metodológica, o domínio filosófico.”
Casou, em 1881, com Maria José de Castro Fonseca, filha de um Almirante, a quem dera aulas particulares, particulares até demais, como se infere de carta sua a Assis Brasil: “Casei-me a 30 de março, isto é, dois meses antes do que esperava. Ainda não tinha casa pronta, nem podia demorar o casamento sem que sobreviessem obstáculos que poderiam ser insuperáveis.”
Desse casamento que durou apenas onze anos, pela morte de Maria José de febre puerperal, nasceram cinco filhos: Honorina, Adriano, Fernando, Henrique e Matilde. Os que merecem registros mais significativos em sua vasta correspondência são: a filha Honorina que viria a se tornar, em 10 de janeiro de 1911, contra a sua vontade e para sua profunda tristeza, a freira carmelita Maria José de Jesus, beatificada pela Igreja Católica e Fernando, a quem chamava de Abril, por ter nascido nesse mês e cuja morte prematura, de pneumonia dupla, em 24 de outubro de 1918, o fez baquear profundamente, aumentando a sua casmurrice e infelicidade.
Em 1883, mediante concurso em que superou outros quatro candidatos, entre eles, Franklin Távora, consegue realizar o sonho de ser professor do Colégio Pedro II, de Corografia, que vem a ser o estudo ou descrição geográfica de um país, região, província ou município e História do Brasil, com a tese Descobrimento do Brasil e seu Desenvolvimento no Século XVI. Em 1889 foi excluída do currículo escolar do Colégio Pedro II a cadeira de Historia do Brasil. Capistrano se recusa a ensinar História Geral, denuncia o fato e é posto em disponibilidade.
Nesse mesmo ano de 89 publica o seu primeiro livro: O Descobrimento do Brasil, escrito em 40 dias. A sua grande obra, Capítulos da História Colonial (1500-1800), foi produzida em um ano, sendo patrocinada pelo Centro Industrial do Brasil e publicada em 1907. É nela que fica realçada a sua capacidade de sintetizar, que o consagrou definitivamente como historiador e não um mero coletor de acontecimentos, nomes e datas.
Capistrano, expoente que era do Movimento de 1870, que tinha como pressuposto o cientificismo ou método crítico com três elementos básicos: testemunha visual, caráter lógico do relato e coerência entre o texto e realidade, renovou os métodos de investigação científica e de interpretação historiográfica brasileira da época, partindo do determinismo sociológico – positivista que foi e deixou de ser – para, em seguida, descobrir a essência do que regia a sociedade colonial.Fica claro que sua análise da sociedade brasileira, lastreada na influência teórica da teoria realista alemã de Leopold Von Ramke, enfoca o estudo do ambiente, dos fatores corográficos, da miscigenação da raça, dos aspectos econômicos e psicológicos,sempre realçando a conquista do interior pelo brasileiro mestiço.
Para ele, já mostrando a sua face republicana, o destaque não é o português ou reinol, mas a capacidade do povo e das pessoas comuns, sem expressão política, na procura de uma identidade nacional ao longo de nossa evolução histórica, deixando, cada vez mais patente, a desimportância do Rei, vice-rei, governadores e dos heróis.O povo é o sujeito da história.
Por outro lado, fugindo do geral e indo para o particular, visualiza com a sua ótica corográfica a cidade do Rio de Janeiro, que o abrigou por 53 anos, permitindo antever, como se urbanista, sociólogo e antropólogo fosse, com quase um século de antecedência, o caos em que viriam a se tornar as favelas nos morros cariocas.
Capistrano denuncia isso em carta a João Lúcio de Azevedo, em 11 de novembro de 1921: “Muita gente é amiga dos morros e cita em seu favor a opinião dos estrangeiros que aqui passam indiferentes ao que deixam. Sou adversário convicto: enquanto não for arrasada a maioria, morros são compartimentos estanques que impedem a circulação social.”
Autodidata, lendo muito mais que escrevia. Adorava ler na rede e para onde viajava pelo Brasil – quase sempre para casa de amigos – a levava sem medo e pudor. Curioso e inquieto, não sossegou até aprender a língua alemã, além do latim, francês e inglês que já manejava.
Sem nunca ter saído do Brasil, ao longo de seus 74 anos, incompletos, idade avançadíssima para a média de vida do brasileiro de sua época, foi se tornando cada vez mais culto, fechado em si mesmo, a ponto de se auto intitular, a partir de 1925, de João Ninguém, sem nunca perder a capacidade de escrever de forma simples, elegante e perspicaz, especialmente na sua vasta e dispersa correspondência aos amigos.
Sua correspondência, organizada pacientemente por José Honório Rodrigues em três volumes, é, segundo alguns, a sua segunda grande obra. É ela uma demonstração de apreço aos amigos, conhecimento profundo do que falava, firmeza de ideias, capacidade de rir de si mesmo, falar das perdas familiares, suas doenças, achaques e da caturra melancolia, que o acompanhou ate à morte em sua casa, em Botafogo, Rio, em 13 de agosto de 1927, rodeado de amigos verdadeiros que, em féretro a, pé, o levaram ao Cemitério.
Provavelmente, a melhor descrição de Capistrano de Abreu tenha sido feita por seu amigo João Pandiá Calógeras, um dos fundadores da Sociedade Capistrano de Abreu, em discurso no Instituto Histórico e Geográfico, logo após a sua morte. Diz Calógeras: “Rude, em sua terrível franqueza; hostil a todo o pedantismo; irremediavelmente indignado contra toda futilidade vaidosa, detestava hipócritas. Sincero admirador das mentalidades superiores era destituído de toda inveja. Indulgente, quando explicável a falta por um motivo mais alto, por amor à inteligência ou à bondade perdoava deslizes de menor alcance. Intratável em questões de honra, de lealdade e de afeição, não admitia atenuantes para o delinquente.”
Este perfil poderia ser resumido em uma frase do próprio Capistrano: “Eu proporia que se substituíssem todos os artigos da Constituição por: Artigo Único – Todo brasileiro fica obrigado a ter vergonha cara”. Mas, adocemos a sua mordacidade com duas frases suas:“Todo artista tem um germe original que é a base e o ‘substratum’ de seu talento” e, “Nunca pensei que eu pudesse morrer”.
Na verdade, não morreu. Transformou-se.
As citações estão contidas na Bibliografia consultada:
– AMARAL, Eduardo Lúcio Guilherme, Correspondência Cordial – Capistrano de Abreu e Guilherme Studart, Fortaleza, Museu do Ceará, Sec. Cultura do Ce, 2003.
– BUARQUE, Virginia A. Castro. Escrita Singular – Capistrano de Abreu e Madre Maria José, Fortaleza, Museu do Ceará, Sec. Cultura do Ce, 2003.
– CÂMARA, José Aurélio Saraiva. Capistrano de Abreu, UFC, 1999.
– Modernos Descobrimentos, Capistrano de Abreu Descobridor [on line]. Rio de Janeiro, PUC, Disponível: www.modernosdescobrimentos.inf.br [22.10.2003].
– RODRIGUES, José Honório (Org.). Correspondência – Obras de Capistrano de Abreu, 03 volumes, Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira, 1977.
– SÁEZ, Oscar Calavia. A Morte e o Sumiço de Capistrano de Abreu [on line]. Florianópolis UFSC. Disponível: www.cfh.ufsc.br [26.10.2003]
A VIDA EM CÓDIGO: SAULO RAMOS
Faz anos. Ganhei o livro “Código da Vida”, de Saulo Ramos. Li-o, mais por curiosidade que por outra razão. O livro é derramado, aberto, sem censura. Aos 78 anos, em 2007, curado de um câncer, e sabedor de uma doença coronária grave, Saulo Ramos resolve contar sua vida, do seu jeito, seguindo seus cânones. Escreve como advogado, mas sem esquecer a sua vertente literária – tipo contador de histórias- como integrante de duas academias de letras: a de Ribeirão Preto e a Santista. O livro já teve mais de 20 reimpressões e deve aumentar os lucros da editora Planeta, agora que Saulo Ramos morreu, em 29 de abril último, vítima do coração já esfalfado, em face de sua dura, brilhante e, quiçá, romanesca vida.
Nasceu em 1929, em Brodowski, cidade pequena, vizinha a Ribeirão Preto. Lá, já havia nascido outro brasileiro ilustre, Cândido Portinari. Portinariestá lá na página zero do seu livro com um retrato em crayon de Saulo, aos 24 anos. Ele manuscreve e proclama: “Para Saulo, que honrará nossa Brodowski, lembrança afetuosa do Portinari, 1953”. Não deu outra, Saulo foi um dos maiores paulistas dos últimos tempos.
Nasceu pobre, chegou a ser caminhoneiro, mas descobriu na advocacia o seu destino. Discípulo de Vicente Ráo, um grande advogado, resolveu fazer carreira solo. Foi quase tudo na advocacia e na política brasileira. Só não foi mais porque não o quis. Começou trabalhando com Mário Covas, depois foi ajudar Jânio Quadros a ser presidente por sete meses e chegou a ser ministro da Justiça de José Sarney, de quem era grande amigo. Tancredo morreu como todos sabem, antes da posse na presidência. Havia um impasse. Saulo comandou a equipe que solucionou o problema constitucional. O resto já é história.
O livro não é um exercício de modéstia. Não poderia sê-lo. Saulo, aos 78, tinha a língua solta dos que acreditam estar próximo o encontro com o desenlace. É, talvez, uma autobiografia romanceada. Parte de um caso singular da defesa, por Saulo, de um pai, acusado de pedofilia pela própria mulher, a partir de gravação feita com os filhos. E esse eixo básico não é seguido. Há muitas vertentes e ocasiões em que o autor, vaidoso, nomeia várias celebridades. São tantas, entre elas, Che Guevara. Conta um jantar com ele, em 1962, em Punta Del Este, Uruguai. Em seguida, vem a concessão por Jânio Quadros da “Ordem do Cruzeiro do Sul” ao então ministro cubano. Por fim, afirma que Fidel Castro estaria por traz da trama que matou Guevara na Bolívia.
Paro por aqui, não vou tirar o prazer dos futuros leitores do livro. É um passeio pela história brasileira contemporânea. No livro, Saulo não poupa Lula. Diz cobras e lagartos do então presidente da República e se derrama em amores e elogiosa José Sarney. Não só Lula é criticado, até alguns integrantes do STF são descritos sem muita piedade pela azedia de Saulo. A história, que é o fim condutor da narrativa, não concluída no texto, merece um epílogo em que ele deslinda tudo.
Não gostei da batida citação – o livro tem 140 – atribuída a Charles Chaplin usada para fechar o livro. Ela, no meu pensar, é piegas e esgotada. Merecia outra, talvez dele próprio. Quem sabe, esta: “Espero que tais fatos esclareçam algumas interrogações daqueles que os viram acontecer e sejam úteis para as novas gerações, que ainda dependem dos historiadores, nem sempre muito fiéis, segundo tenho visto em isoladas manifestações de jornais. Mas advirto: os fatos são aqui narrados numa espantosa desordem cronológica, porém fielmente. Detesto a manipulação do passado e o mascaramento das versões”. Saulo Ramos.
João Soares Neto
CRÔNICA PUBLICADA NO JORNAL O ESTADO EM 3/5/2013
MEUS HOMENS
Faltando 06 dias para o ano de 1999 terminar e com essa estória da mídia publicar listas disso e daquilo, pois não é que me lembrei de fazer a lista dos cinco homens com os quais mantive contato pessoal, mesmo que eventual, e que ficaram no meu “Top of the mind”, ou no topo das minhas lembranças.
Da vida universitária dois nomes surgiram cristalinos: Heribaldo Costa e Parsifal Barroso. Heribaldo era professor de Introdução à Ciência do Direito e a ele devo parte do pouco que aprendi de filosofia e lógica. Austero, obrigava os alunos a usar paletó em suas aulas e teve a coragem de dar mais de cem zeros em uma prova semestral. Houve uma campanha forte contra ele e a aposentadoria o acolheu.
Parsifal era Governador do Estado e dava aulas de Ciência Política com a simplicidade de um padre e a fluência e o saber que Deus lhe deu. Falava pausado, era enfático e apaixonado pelo conhecimento. Vez por outra, me pedia carona para ir deixá-lo em palácio.
Vão me chamar de presumido (faz mal não), pois vou citar três nomes consagrados mundialmente. Em 1962 passei num concurso e fui fazer um curso de verão na Universidade de Harvard. O coordenador do curso era Henry Kissinger, que viria a ser, em seguida, Secretário de Estado e o segundo homem mais importante dos Estados Unidos, apesar de ser judeu alemão. Nariz adunco, óculos grossos, voz com sotaque, grave e rouco, ficava fulo da vida quando se falava em imperialismo americano e, uma vez, nos perguntou sobre “o imperialismo paulista”.
Nessa mesma viagem fomos a Washington para uma visita a várias autoridades. Eu, como fazia direito, integrei um pequeno grupo que teve a sorte de conversar com Bob Kennedy, então Ministro da Justiça. Seu gabinete era amplo, poltronas de couro e um grande quadro abstrato na parede principal. Ele era jovem, absolutamente descontraído e cordial. Em cima do seu birô repousava um capacete amassado de soldado e a seus pés dormitava um enorme cão. Na hora da informalidade, perguntou se sabíamos a razão daquele capacete estar ali. É claro que não sabíamos. Disse ser o símbolo da luta pelos direitos civis dos negros. Brincalhão, indagou quem entendia de pintura para explicar o seu quadro abstrato. Muitos palpites, nenhum acerto. Ele riu e falou que era uma chuva de papel picado quando das comemorações da eleição de seu irmão John.
De paletó e gravata, todos ficamos nos jardins internos da Casa Branca, ali onde os presidentes dão entrevistas. De repente, lá vem John Kennedy. Louro, queimado de sol e paletó azul marinho. Falou de sua “aliança para o progresso”, perguntou quantos futuros presidentes do Brasil sairiam dali e trocou palavras amenas com alguns de nós. A mim, por exemplo, perguntou de que região eu era. Nervoso, troquei nordeste por noroeste. Quatro meses após ele seria assassinado em Dallas.
Feliz Ano Novo para todos.
João Soares Neto,
escritor
CRÔNICA PUBLICADA NO DIÁRIO DO NORDESTE EM 26/12/1999.
PSIQUÉ
Neste mês de dezembro todos recebem cartões, brindes, presentes e convites. Boa parte deles peca pela falta de imaginação e alguns atentam contra a sensibilidade. Um dos convites que recebi me chamou a atenção. Foi um de formatura em psicologia.
Por que me chamou a atenção? Pela linda gravura de William Adolphe Bouguereau, designada como “Invading Cupid’s realm” ou invadindo o reino de Cupido. Uma linda mulher semi-nua cercada de anjos parece quebrar barreiras.
Foi isso o que o convite me passou: quebrar barreiras. Além dessa abertura inusitada, procurou não puxar saco de ninguém escolhendo os pais como “patronos” e os mestres como “paraninfos”. E não fica só nisso. Conta o Mito de Eros e Psiqué. Vejam um dos trechos: “Psiqué penetrou o palácio e, a partir de então, foi servida por uma multidão de Vozes, que lhe atendiam mesmo os desejos não formulados. Naquela mesma noite da chegada da princesa, Eros, sem se deixar ver, fez de Psiqué sua mulher, mas, antes do nascer do sol, desapareceu rápida e misteriosamente”.
Ainda fugindo das citações convencionais, o convite contém citações que transcrevo para conhecimento de vocês.
De Ruy Barbosa, aos pais (Se um dia já homem feito e realizado, sentires que a terra cede a teus pés e que não há ninguém para te estender a mão, esquece a tua maturidade, passa pela tua mocidade, volta à tua infância e balbucia entre lágrimas e esperança as últimas palavras que te restarão na alma: meu pai, minha mãe).
De Fernando Pessoa, aos professores (Mestre, meu mestre! Na mágoa quotidiana das matemáticas do ser, Eu escrevo de lado como um pó de todos os ventos, Ergo as mãos para ti, que estás longe, tão longe de mim!).
Mário Quintana, aos clientes (… até que um dia, por astúcia ou por acaso, depois de quase todos os enganos, ele descobriu a porta do labirinto. Nada de ir tateando os muros como um cego. Nada de muros. Seus passos tinham – enfim! – a liberdade de traçar seus próprios labirintos).
Como mensagem final, Manuel Bandeira (Assim eu quereria o meu último poema. Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais. Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas. Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume. A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos. A paixão dos suicidas que se matam sem explicação).
Não é um charme?
João Soares Neto,
escritor
CRÔNICA PUBLICADA NO DIÁRIO DO NORDESTE EM 19/12/1999.
A PARANÓIA DO 2000
Está todo mundo contando. Faltam 24 dias para o ano 2000. E daí? O que é que este tal ano dois mil vai mudar na sua vida se você mesmo não resolver mudar? Não é o tempo, se considerarmos que um ano é um período de tempo, que muda você. O que muda você é o uso que faz do tempo. Então, cara prepare-se para mudar daqui a 25 dias ou tudo vai continuar na mesma, sem que o calendário possa ser usado a seu favor.
Um doidinho, Albert Einstein, na primeira metade deste século, andou desmanchando o que Isaac Newton dizia há tempos: o tempo é absoluto. Não é. O tempo é relativo, segundo o Albert. E para entender tudo isso é preciso ficar sabendo que não existem só três dimensões: altura, comprimento e largura, formando o espaço. Além dessas três existe o tempo, que é uma quarta dimensão. Pois voltando ao que interessa, nós vivemos em função do espaço e do tempo e é por tal razão que digo: se não soubermos aproveitar o tempo, de nada valerá o espaço, isto é, o mundinho que escolhemos para nós.
Pode parecer confuso o que disse acima, mas não é. Se tiver dúvida, releia.
Você precisa administrar o seu tempo, fazer as coisas acontecerem, ao invés de ficar na janela olhando o mundo rodar. Mova-se, traduza-se em movimento, ação e descubra em si e nos outros o sentido de sua vida. Vá tentando e consegue. Não desanime se o seu atual espaço não lhe for favorável, respire fundo e lembre-se que o mundo todo é o seu espaço, só o tempo é finito, em sua dimensão.
O que estou querendo lhe passar é que é preciso limpar a sujeira que o tempo deixou em seu corpo e na sua mente. Remova as estruturas superadas que só servem de obstáculo às mudanças que você ensaia fazer e não faz. Sai dessa, se você acha que o 2000 é milagroso, vai rodar. Quem tem que obrar o milagre é você, sacudindo os seus poréns e entretantos. Deixe de procurar resposta no tempo e no espaço, a resposta está, usando o que disse Taiguara, no “universo do teu corpo”. Mexa-se e descubra se pode mandar para a cucuia o que lhe está enchendo o saco há tempos. Aproveite a desculpa do ano 2000 para romper alguns preconceitos que você mesmo criou. Dane-se o que os outros pensam ou você vai ficar ai esperando por milagre?
Daqui a alguns dias você será uma pessoa do século passado – se você acredita que o século termina em 1999, mas isto é outra estória – e se não ficar atento, independente da sua idade, poderá parecer antigo, ultrapassado. Mostre que não é antigo, ligue-se no espaço e no tempo e desligue-se das pessoas chatas que perturbaram no “século passado”. Assuma um compromisso e tente o usar o tempo como aliado e o seu espaço parecerá mais livre e despido de obstáculos para encontrar a felicidade que está aí no “universo do seu corpo” e da sua alma.
João Soares Neto,
escritor
CRÔNICA PUBLICADA NO DIÁRIO DO NORDESTE EM 12/12/1999.