Inédito

ENFARTE E FAMÍLIA

Um amigo de velhas datas liga pedindo uma hora para conversar comigo. Como esse amigo sabe que não revelarei seu nome, nem sob tortura, posso me permitir escrever, em linhas gerais, sobre o teor da nossa conversa. Aliás, eu submeti este artigo à sua análise.
Um dia, dirigindo o seu carro após o trabalho, veio aquela dor violenta entre as costas e o peito e ele teve força de chegar a um hospital. Saiu de lá dez dias após com três pontes de safena, recomendações sobre mudança de estilo de vida e uma porção de remédios a tomar todos os dias, pelo resto da vida. Chamou a mulher e disse desejar repensar sua vida. Ela chorou abraçada a ele e ficou calada. Ficou mais 20 dias em casa. Os dias não passavam, a televisão cansava e a cabeça não parava de martelar questões sem respostas.
Esse meu amigo desejava trocar ideias sobre ele, sua empresa e seus filhos. Descobrira-se mortal. Reuniu a mulher e os filhos para uma conversa. Disse que ia tirar o time de campo e queria saber a opinião de cada um. Foi um Deus nos acuda. Segundo ele, os filhos ficaram apavorados, pois ainda não estavam preparados para comandar a empresa, feita com muito trabalho, dedicação e renúncia.
Por essas dúvidas ele me procurou e conversamos mais do tempo combinado. Relembramos fatos, demos algumas risadas e até algumas lágrimas rolaram, talvez pela certeza da finitude e da nossa incapacidade de administrar situações complexas.
Lembrei – me, rindo comigo mesmo, da condição de “conselheiro” e me descobri sem quase nenhuma capacidade de ajudá-lo. Preferi que, nós dois, entendêssemos os dramas na sua cabeça e analisássemos o que, igualmente, poderiam pensar – naquela situação – os seus filhos. Uma coisa estava definida para ele: queria escolher alguém capaz para dirigir os negócios no lugar dele. Ele ficaria apenas dando as diretrizes. A quem escolher? Falou, com carinho, sobre os filhos, quase todos formados, mas nenhum quisera fazer mestrado ou ganhar experiência trabalhando em outras empresas. “Não tinham estrada” e não conheciam, no duro, o chão de fábrica. Viviam do que a empresa lhes pagava e não esperavam, para tão rápido, a possibilidade de um deles ter de assumir, para valer, a direção do negócio. Talvez, por culpa do meu amigo, não eram ainda trabalhadores profissionais, de sol a sol, não conheciam o seu atual nível de “stress”, nem amargaram anos de lutas e as noites em claro antes de tomar decisões.
A partir de suas informações, fizemos o perfil de cada um e, além de todos os problemas, como sombras, as figuras de nora e genro apareceram. A coisa complicava e eu sem saber mais o que dizer. Por fim, lhe sugeri optar por alguém de fora da família, com características e habilidades semelhantes às que ele acreditava ter ou queria para a empresa, neste mundo competitivo, não morrer. Ele coçou a cabeça e pediu um tempo para pensar.
Há três dias recebi um telefonema dele. Contratara um profissional de excelente nível, na faixa dos 30 anos, ganhando quase o mesmo que seus filhos que ficaram resmungando e ele bateu firme na mesa. Estava decidido. Nenhum assumiria, continuariam fazendo o que sabiam e ainda era pouco. Hoje, ele viaja, pela primeira vez, à Europa. Boa viagem.
João Soares Neto,
escritor
CRÔNICA PUBLICADA NO DIÁRIO DO NORDESTE EM 05/12/1999.

Inédito

LUSTOSEX

Lá estávamos nós na fila, vendo o primogênito do “Seu Costa” e de “Dona Dolores” espalhar a sensibilidade, a mordacidade e a gentileza que se amalgam em sua personalidade.
Terno azul, camisa branca, gravata importada, cabelos aparados, óculos graves e aquele bigode latino que criou para espantar a timidez e lhe dar o ar da sisudez que não tem, embora cultive.
Não era uma noite de autógrafos, era uma festa de benquerença, de reencontros e de reminiscências entre o autor e muitos de seus personagens políticos, de amigos e do dia- a -dia de sua vida que se transformou em um triângulo afetivo: Sobral, Fortaleza e Brasília. Peguem um mapa do Brasil e vejam se não dá um triângulo, não um equilátero, mas um isósceles, pois um dos vértices desse triângulo parece ser o seu centro gravitacional.
Esse menino tímido que, desde cedo, bisbilhotava o viver dos outros com a argúcia do futuro contador de estórias, estava ali declarando, de público, ter atingido a sexagidade, se é que esta palavra existe ( caso contrário, fica a sugestão para o próximo Aurélio). E a declarava com a verve e o gostoso “non sense” com que mistura suas múltiplas vidas nas cidades que escolheu para viver e amar e a sua permanência triunfal em Paris, quando os filhos lhe passavam “quinau” em seu francês pouco Sartreano.
Soares Feitosa, esse cearense que mostrou a possibilidade de ser técnico, empresário e intelectual em uma só pessoa, nos dá um puxão com “as orelhas” que escreveu no “Como me tornei Sexagenário”. Claro, profundo e com a simplicidade que só os que sabem ler podem ter. Digo isto e provo. Cito o Feitosa em questão: “Poucos têm o dom. Lustosa da Costa tem. Sob prosa leve, um senso de humor à inglesa, a capacidade de rir em primeiro de si mesmo, e – as cartas, o epistolar… onde parece escrever para a eternidade. Pinçar, eis a essência do escrito lustoseano nesse mar de banalidades”.
Para não dizer que também não pincei nesse mar de palavras alguma coisa, mostrarei o lado “tímido sex” do autor, revelando, com a sua forma peculiar, cinco dos seus muitos encontros-desencontros amorosos. Vamos a eles? 01.“Também conheci uma moça gordinha, do interior, de pele macia como a carteira de plástico com que me presenteou. Foi um namoro que não se consumou apesar do mimo”. 02. “Anos depois, barba feita, coração por fazer, amei. E amando, gastei a sola dos sapatos, muitas vezes por dia, pela rua Joaquim Ribeiro, na esperança de avistá-la à janela”. 03. “Fui acometido de esperanças violentas e desesperos mortais. Até que veio o não”. 04. “A essa época, namorei Maria Helena, que era jovem e virgem como acontecia àquele tempo”. 05. “O sexo não era risonho nem franco. A moçada de hoje, criada com a tranqüilidade da pílula e o conforto dos motéis, precisa saber que, naquele tempo, não havia nem uma coisa nem outra”.
Muito mais teria. Vou ficando por aqui, pois o espaço é curto – e o Bilas teima em editá-lo com esse tipo de letra que faz a alegria dos oculistas – citando o próprio Lustosa: “escrever, para mim, é compulsão. Escrever me libertou da timidez. Escrever me pôs em contato com o mundo o que nem sempre é fácil, oralmente”.
João Soares Neto,
escritor
CRÔNICA PUBLICADA NO DIÁRIO DO NORDESTE EM 28/11/1999.

Inédito

ONTEM E HOJE

Estava eu cá pensando como os meninos de hoje são diferentes dos de antigamente. Tenho um amigo, filho de um amigo, de sete anos. Ele me chama de João e não tem a menor cerimônia em falar comigo. Até a última vez em que o vi ele tinha quatro pontos na testa, já havia visto o “Titanic”34 vezes, montara uma réplica do dito cujo sem grandes dificuldades e mexia com informática, especialmente jogos.
Por conta disso, lembrei da minha infância, quando qualquer pessoa mais idosa era senhor ou senhora e resolvi recolher fatos, alguns bobos, perdidos no tempo que aconteceram comigo. Muitos deles não fazem hoje o menor sentido, mas acreditem, aconteceram.
– Aos cinco anos me perdi. Fiquei olhando desconfiado para todos os lados. Um senhor perguntou meu nome, o nome dos meus pais e onde eu morava. Voltei para casa. Todos se conheciam.
– Tinha só nove anos e gostava de voar de teco-teco (avião monomotor) com meu pai. Ele colocava um caixão coberto de alumínio cheio de gelo dentro do avião. Descíamos nas praias desertas e comprávamos peixes. Voltava feliz e cheirando a peixe.
– Nessa mesma época aproveitei o carro do meu pai dando sopa e liguei a chave. Sem saber como, engatei a ré e foi fogo para parar. Não sabia como. Aprendi a dirigir ao contrário.
– Foi aos 10 anos. Não tinha idade para fazer o “admissão ao ginásio”. Um exame então obrigatório ao ingresso no curso secundário. Aumentaram minha idade. Até hoje sou, oficialmente, um ano mais velho. Quando fui casar deu problema, a certidão de nascimento era diferente do batistério.
– Por volta dos 11 anos, no carnaval, meu pai me deu um vidro de lança perfume. Saí em um caminhão cheio de gente e despejei todo o conteúdo do vidro em uma menina. Ela me olhava e eu esvaziava o vidro, sem trocarmos uma palavra. O vidro secou e eu mudo fiquei.
– Aos 12 anos comprei uma bola e fiz um time de futebol. Fiquei na reserva. Acabei com o time.
– Com treze anos já era encrenqueiro. Um professor era um pé no saco e a maioria da turma não gostava dele. Na hora do recreio, juntamos areia e fizemos um simulacro de seu corpo em cima da grande mesa da sala de aula. Quando ele chegou, esbravejou e todos rimos. Ele deixou a turma.
– Aos 13 anos apaixonei-me por uma moça mais velha. Ela foi a uma festa à noite e eu esperei que o dia amanhecesse para brigar.

– Tinha um parente bispo que, vez por outra, me convidava para viajar com ele. Um dia chegamos a um convento, onde serviram uma merenda reforçada. Ele me chamou ao canto e disse: Encha os bolsos com o que você puder. Bispo não pode, mas perdoa.
– Nessa época, 13 anos, tive um surto de fé fora do comum. Queria entrar no seminário para ser padre. Meu parente, bispo, pediu que um padre amigo conversasse comigo. Batemos um longo papo e ele sugeriu que eu passasse uns meses rezando para confirmar minha fé. Deu no que deu.
– Aos 14 anos, véspera do Dia das Mães, fiz um discurso infame no colégio. Ganhei o apelido de “João Mamãe”.
– Aos 16 anos fazia política estudantil e gostava dos congressos para escrever dedicatórias nas pastas de papelão das colegas. Recebia delas, em contrapartida, muitas frases feitas, a exemplo de: “o essencial é invisível aos olhos” ou “tu és eternamente responsável por aquele que cativas”. Antoine Saint-Exupery e “O Pequeno Príncipe” estavam na moda. Antes das misses.
Tudo isto foi já na segunda metade deste século que está por terminar e parece tão distante, como se o hoje caçoasse do passado.

João Soares Neto,
escritor
CRÔNICA PUBLICADA NO DIÁRIO DO NORDESTE EM 21/11/1999.

Inédito

TESTEMUNHA, SEM QUERER

Acabara de chegar da Grécia. Era uma Quinta-feira fria em Mannheim, cidade vizinha a FrankFurt. A noite de 09 de novembro de 1989 corria normalmente. Gravávamos uma fita com jazz ( entre elas, Bye Bye Black Bird) e uma fantasia composta por um alemão sobre o Hino Nacional brasileiro e o vinho ajudava a espantar o frio. A TV estava ligada baixinho, como contraponto. De repente, o noticiário da TV começava a sair do seu natural e os repórteres davam informações desencontradas. Vali-me de meu cunhado alemão para entender. Ele me respondeu: não estou compreendendo nada, parece que o Muro de Berlim está caindo.
O povo começava a sair às ruas e não havia nenhuma autoridade falando, pois Helmut Kohl, estava ausente do país em visita oficial à Polônia( Seria de propósito?). O que se soube logo foi que as autorizações de saída de Berlim Oriental estavam sendo concedidas sem limitações e em prazos mínimos.
As pessoas passaram a tirar pedras do muro e o resto todo mundo já sabe. Começara a ruir o mais forte ícone da divisão forçada da Alemanha, feita pelos aliados e a União Soviética, um país que nunca gostou de ser tutelado.
Hoje, passados 10 anos, pode-se dizer que Mikhail Gorbatchov, então premiê da URSS, foi um dos grandes alavancadores desse processo de abertura, iniciando o fim de uma guerra fria beneficiadora de fabricantes de armamentos e políticos reacionários iludindo seus eleitores, de ambos os lados.
Eu estive em Berlim Oriental, antes da queda, passei pelo “Check Point Charlie” e senti como era rígido o controle de entrada. Viajava de trem. Primeiro, o trem parou. Depois vieram policiais com cães amestrados farejando tudo. Em seguida, lanças com espelhos na ponta, como os que os dentistas usam para olhar os nossos dentes de trás, foram passados por baixo dos vagões do trem. Após tudo isso, descemos, entregamos os passaportes, faziam algumas perguntas, nos fotografavam, mandavam comprar certa quantia em marcos orientais – que não podiam ser recomprados na volta – e aí, sim, éramos liberados para uma visita restrita. Isto é, não se podia ir aonde queríamos, mas aos pontos recomendados.
Isso foi no fim da década de 70 e eu não podia entender edificações divididas ao meio, um muro altíssimo, rolos de arame, casamatas, postes com iluminação feérica, postos de observação e um aparato de guerra que não combinava com a efervescência a 200 metros dali, onde em Berlim Ocidental a vida corria normalmente, com o seu ar cosmopolita.
Pulemos para 1989. A noite se fez tarde, os vinhos seus efeitos e fomos dormir. Ao amanhecer, a história tinha dado mais um passo e os jornais e as televisões mostravam os estragos no muro, famílias se reencontrando e o povo nas ruas. Houve excessos, de lado a lado, nas comemorações, e só depois de algum tempo é que a calma voltou a reinar.
Hoje, dez anos depois, tendo voltado algumas vezes à Alemanha, sinto que os 400 bilhões de dólares gastos na reconstrução da parte oriental surtiram efeito, mas há muitos descontentes, especialmente os que tiveram de pagar a conta. Mas isto é outra história.
João Soares Neto,
escritor
CRÔNICA PUBLICADA NO DIÁRIO DO NORDESTE EM 14/11/1999.

Inédito

IMPACTO

A gente vê na televisão, lê na revista e no jornal e não sente quase nada. 214 pessoas morreram na queda no mar de um boeing 767 da Egypt Air, no nordeste dos Estados Unidos. E daí?
A banalização da desgraça alheia passa pelas mortes das Febens da vida, na indiferença na doença grave de uma pessoa conhecida, nas micro-guerras de todos os dias, nas guerrilhas, no desemprego definitivo, nos assassinos paranóicos de escolas, empresas e cinemas, nas lutas dos sem terra, na Aids e a fome dizimando a África com os olhos cegos da Organização Mundial de Saúde, preocupada com a obesidade no Primeiro Mundo e na morte de uma prefeita que queria apenas trabalhar honestamente.
E nós comendo, rindo, trabalhando, dormindo, como se vivêssemos em um outro planeta e estivéssemos anestesiados. Afinal, a anestesia serve para alguma coisa, mitiga ou suprime dores/ sentimentos que, após a sedação, voltam fortes ou desaparecem, se a razão da dor ou do sentimento foi extirpada ou os nervos definitivamente lesados.
Mas falávamos de desgraça e de como essas desgraças não nos causam mais impactos. Talvez, se pudéssemos, gostaríamos de um pouco mais de tranqüilidade, mas como? Queremos o controle remoto para o portão, o celular que nos azucrina, o cartão de crédito, o computador, a tevê com os seus shows da vida e da morte, os jornais com suas fofocas e a dia a dia com a sua dureza.
Somos bombardeados com informações. O que ganhamos com tanta informação? De que vale uma linha quente (hot line) que nos mostra, a todo instante, as desgraças do mundo, os cartéis de droga, governos sendo depostos, fofocas, crianças abusadas sexualmente, pornografia na Internet, o FMI ditando normas, um presidente de CPI querendo aparecer, os cartões de crédito cobrando os juros da cara com a maior cara de pau?
Creio que isso parece um pouco do apocalipse. A burrice de não saber usar o que o progresso nos concede, de não entender o mundo e saber conviver com as pessoas. Cada um vai se fechando nos seus muros existenciais, deixando de sentir os impactos, quer das sensações positivas, quer das que nos deveriam machucar profundamente e apenas causam – quando causam – mossas em nossos sentimentos e consciências.
Mal comparando, é como alguém que faz plástica e fica perguntando aos outros se ficou bom. Quem tem que saber é a própria pessoa, os outros não estão nem ai. Ninguém está nem ai para as dores dos outros, imagine plástica. E tudo parece plástica.
E no meio de tudo que escrevi de forma desencontrada, propositadamente, pode existir alguma resposta e cada um deve procurá-la do seu jeito, na urgência do tempo que passa e dos impactos que não ferem mais, desde que não sejamos nós as vítimas. Nesse caso, a coisa muda. E como muda.
João Soares Neto,
escritor
CRÔNICA PUBLICADA NO DIÁRIO DO NORDESTE EM 07/11/1999.

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CONSTRUTOR DE SONHOS

Sonhei que eu era um construtor de sonhos. Amo sonhar o impossível, como diria Goethe. Um menino nascido em meio a uma realidade dura, tentando transformá-la, abençoado por Deus, pela esperança, por pessoas e pelos ventos dos tempos.
Nesse sonho, entre os bocejos da noite e o espargir da aurora, cuidei de plantar. Preparei o solo, eu que nem de terra entendo, adubei-a com o sal do suor, misturado a raras, mas sofridas lágrimas e a reguei com afinco, como se fora uma chuva fina e constante que molha, mas não encharca.
Sonhei que não acreditavam no meu plantio, mas não sabiam que as sementes tinham na sua composição as qualidades do destemor e da perseverança e, se pareciam fenecer, era apenas o entretempo certo ao desabrochar radioso. E eu jardineiro estava ali presente, sempre. Os jardineiros têm as mãos marcadas por espinhos, mas não perdem a sensibilidade, nunca.
Raras sementes e a espera, após a rega, se fizeram demorar, pois não eram couves, imaginavam-se bambus, poucos que fossem. E furaram a terra difícil e viram o despontar do sol em meio a um quase deserto. Como eram bambus ou queriam ser bambus não tinham medo dos açoites dos ventos e os recebiam com um aparente vergar. Engano ledo. Logo voltavam, eretos e se faziam fortes para florescer em meio às daninhas ervas.
E como em sonho tudo é permitido, os poucos bambus foram se enfeixando, metamorfoseando-se em um jovem baobá. Sentindo a licença poética dessa transmutação genética, advertiam que os baobás eram uma espécie em extinção. Importava não, a licença poética permitiria a ação transgênica, ora bambu, ora baobá.
Cada sonho é, digamos uma utopia e nem todos são Thomas Morus, mas há os que acreditam nas suas utopias pelo relativismo das coisas. E o sonho não era mais um sonho, posto realidade com a clareza e os matizes da vida. E o sonho amadureceu. Amanheceu.

João Soares Neto,
escritor
CRÔNICA PUBLICADA NO DIÁRIO DO NORDESTE EM 31/10/1999.

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O SENTIDO DAS COISAS

Tem muita gente procurando o sentido das coisas. Compra livros, vai a analistas, escolhe um guru, reza, mas não o encontra. Claro, não há encontro com o sentido das coisas.
Para se saber o sentido das coisas é preciso criá-lo. Você é que deve fazer com que as coisas tenham sentido. Não adianta a muleta dos livrinhos de autoajuda, dos analistas cheios de problemas pessoais a resolver, dos gurus ascéticos e carentes de realidade e da oração sem fé, como uma troca.
Não basta também a boa vontade dos parentes, amados ou dos amigos, você tem de descobrir a sua própria história, viver as suas próprias dores e despedaçar-se, pois, segundo Cecília Meireles “quanto mais me despedaço mais fico inteira e serena”.
Para as coisas terem sentido é preciso que a pessoa se despedace, com o condão de ficar inteira, como resgate.
Todos nós temos ouvido frases como: “a minha vida não faz sentido”, “isto não faz sentido”. E o que faz sentido para você? A vida dos outros? Calcem as suas botas e descubra o seu mundo. Não é preciso ir a Santiago de Compostela para encontrar o Ser Supremo, nem ir a um “ashana” na Índia para ficar zen.
Você é que tem o caminho, o cajado e a escolha. Faça-o sem medo, no dia a dia, em meio à pontaria dos que lhe atiram flechas, como se você fosse o alvo. Você não é alvo, você é algo, torne-se especial, sendo simples. Não precisa usar as sandálias do pescador para se tornar puro, a pureza não vem do vestuário, nem dos olhos dos outros, ela assoma do seu coração e quem o redime é a sua consciência, não o julgamento dos outros.
Cuide de você e já terá um grande trabalho. Que ser complexo é ser você. Ser você é ser único e não uma cópia de alguém ou do modelo que imaginam lhe cair bem. “É preciso ser um realista para descobrir a realidade. É preciso ser um romântico para criá-la”, já dizia Fernando Pessoa. Torne-se romântico sem ser piegas.
Não pense, por exemplo, que “As time goes by”, “She” ou “New York, New York” foram compostas para você, mas se permita sentí-las. Da mesma forma, não se sinta embriagado com Marisa Monte, Fernando Brandt, Milton Nascimento e, vá lá, Roberto Carlos, mas os considere como reserva técnica de seus devaneios. Não deixe que os outros façam as suas coisas e escolham seu destino, calce os seus próprios sapatos, caminhe a dura estrada e se, não encontrar estrada, faça uma. Seja um Rondon, sem medo de florestas e de feras. Quem tem medo fica acuado e não vive, perde-se no labirinto e não encontra a saída e ela pode estar bem aí à sua frente.

João Soares Neto,
escritor
CRÔNICA PUBLICADA NO DIÁRIO DO NORDESTE EM 24/10/1999.

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RUPTURAS

É próprio do ser humano viver de rupturas. Aliás, as rupturas são o cerne do crescimento e progresso, sejam eles pessoais ou coletivos. Todo ato de romper, criar é, em sua essência, uma desobediência, uma quebra com o estabelecido, a procura do novo, mesmo que o novo seja até a reencarnação do velho.
Neste momento que estamos vivendo no mundo, no Brasil e em nossas vidas pessoais tão plenas de problemas e carentes de soluções, é chegada a hora das rupturas, de cada um entender que a mesmice, seja ela coletiva ou pessoal, não nos levará a nada, a não ser a vala comum da mediocridade, onde todos são enterrados como cadáveres desconhecidos ou indigentes mentais.
É preciso ter a coragem de ousar, de olhar o dia, a vida, as pessoas e o mundo que nos cerca como algo a ser modificado, a partir de nossas informações, conhecimentos e valores que, necessariamente, sofreram abalos sísmicos desde os nossos nascimentos. Os valores e a cultura que nos foram passados por nossos ancestrais, pais e mestres, embora essenciais à nossa formação, já não são mais referências pétreas. Até porque a velocidade das transformações ocorreu em todos os campos do conhecimento humano. O certo, o justo e o correto são decorrência de valores em mutação e isto causa um desconforto tanto na “Terra de Marlboro” como aqui na pátria do “levar vantagem em tudo”. Até os amorais e imorais, naturalmente infensos a questões existenciais, estão sendo atingidos por essa aura benfazeja.
Francis Fukuyama, um polêmico professor americano da Universidade George Mason, nos Estados Unidos, já havia escrito há mais de uma década que estávamos no fim da História. Segundo ele, as nações tenderiam a ser democracias liberais e, quando atingissem esse fim, a História terminaria. Iria acabar por falta de objetivo, a ausência da luta pelo domínio, a conquista e o reconhecimento, próprios do ser humano.
Agora, passados dez anos, ele nos propõe uma nova leitura sobre o mesmo tema. Com o seu novo livro, a “Grande Ruptura” (The Great Disruption), ele fala das grandes crises ocorridas nas décadas de 60 a inícios da de 90, como o aumento de criminalidade, divórcios, filhos naturais e, do outro lado, o descrédito pelas instituições sociais e a perda da confiança pessoal.
Citando Fukuyama, Anthony Gottlieb, do “The NYT Book Review”, destaca esse trecho de seu livro: “os seres humanos sempre criam regras morais pelas quais se pautam, em parte porque a natureza os fez assim e em parte pela busca de satisfação de seus próprios interesses”. Gottlieb deseja, na verdade, criticar. E o faz com veemência: “esse é um fenômeno para o qual Fukuyama oferece apenas respostas insatisfatórias”. Ele insiste que nossa recuperação da Grande Ruptura não teve nada de automático.
Eu concordo com Gottlieb. Creio que, rompendo, nós todos estamos crescendo e avançando e isto faz a diferença. Hoje, cada um está, a seu modo, vivendo a sua ruptura continuada, descobrindo novos caminhos, fazendo releituras de suas histórias e tentando obter respostas. E isso é bom.
João Soares Neto,
escritor
CRÔNICA PUBLICADA NO DIÁRIO DO NORDESTE EM 17/10/1999.

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SER CRIANÇA

Já faz muito tempo. Eu era criança quando se podia ir à escola a pé ou de ônibus, ficar brincando na praça perto de casa sem ninguém importunar, jogar futebol com bola de pito.
Eu era criança quando se acordava cedo, orava, tomava banho, vestia a farda, bebia-se café com leite e pão com manteiga ou uma vitamina onde a banana era o carro chefe, levava-se merenda e voltava faminto para almoçar. Mas se aguardava a chegada do pai.
Eu era criança quando se colecionava carteira de cigarros, flâmulas, lápis, moedas, cartões postais, álbuns com artistas de cinema e jogadores de futebol. Jogava-se triângulo, bila, que depois virou bola de gude, soltava-se arraia, que mudou para pipa, e todo menino tinha um time de botão cujo melhor jogador, não sei porque, era sempre o “Paulo Caminha”.
Eu era criança quando quiseram me ensinar a escrever com a mão direita. Não aceitei. Até hoje continuo usando a mão esquerda para tudo e a direita para quase nada.
Eu era criança quando minha mãe queria mandar uma empregada me levar ao colégio segurando minha mão. Não concordei. Fizemos um armistício: a empregada iria pelo outro lado da calçada.
Eu era criança quando um diretor de escola puxou a minha orelha porque me atrasei no recreio. Joguei o refresco que estava tomando em seu corpo, pedi para falar com o meu pai e disse que não ficaria mais ali. Ele concordou.
Eu era criança quando se marchava no dia 7 de setembro puxando carneirinhos ou com caixas de sapato às costas, cobertas de papel branco com uma cruz vermelha, como se fôssemos enfermeiros.
Eu era criança quando no carnaval havia corso, as pessoas passeavam em caminhões e carros conversíveis, sentavam nos para-lamas ou pisavam nos para-choques. Jogavam-se talco, serpentina, confete e dois tipos de lança-perfumes, um dourado e outro de vidro.
Eu era criança quando a praia ainda se fazia distante, pois a cidade lhe dava as costas. Não havia edifícios e os pescadores misturavam-se aos banhistas. Os calções eram frouxos, a areia era branca, limpa e boa para jogar futebol, vôlei ou frescobol.
Eu era criança, imaginem, de rezar o terço, das missas aos domingos, ir às lojas com minha mãe, acompanhar procissões, comungar às primeiras sextas feiras de cada mês, mas não deixava de aprender jiu-jitsu.
Hoje, já não sei bem o que é ser criança. Acompanhei, passo a passo, a vida de minhas filhas, desde o pré-natal. Agora, meio sem jeito e sentindo que estou como que sobrando, tento me misturar com duas pequeninas netas. Mas, não sei mais, de verdade, o que é ser criança Nem sei que presentes dar no Dia das Crianças. As opções são tantas e nada parece ser novidade.
Não gosto do “no meu tempo”. Cada tempo tem suas próprias cores e vida e as cores e a vida de hoje resplandecem de outra forma. Não sou e nem pretendi ser saudosista, quis apenas lembrar o que, à época, se fazia com alegria e simplicidade que, talvez, fossem, para os de então, a essência da felicidade.

João Soares Neto,
escritor
CRÔNICA PUBLICADA NO DIÁRIO DO NORDESTE EM 10/10/1999.

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ESPERAR, POR QUEM?

Tem gente esperando o 1º de janeiro de 2000, como se esse dia venha a ser milagroso e traga, nas suas 24 horas, respostas para as nossas questões, aspirações e sonhos. Sem querer ser um desmancha-prazeres vou apenas dizendo que esse tal 01 de janeiro será apenas o dia da maior ressaca, essa sim, totalmente globalizada.
De Narvik, no pólo norte, à Patagônia, no pólo sul, homens e mulheres, tiradas as exceções de praxe, tomarão os seus pileques, engordarão gramas ou quilos, farão juras de amor, provocarão acidentes de trânsito, gastarão mais do que podem e devem, darão telefonemas melosos, orarão em suas crenças e aproveitarão o grande feriado de 02(sábado) e 03 (domingo) para preparar a entrada na realidade do dia 04 de janeiro, a primeira segunda feira do último ano do século XX. Pois é, o século XXI só começará no dia 01 de janeiro de 2001. Os séculos vão do ano 01 a 00 e, como é óbvio, têm 100 anos.
Tudo bem, mas a virada do milênio será no dia 01 de janeiro, dirão vocês. Será não, segundo alguns poucos cientistas que falam na mudança do calendário gregoriano, no acúmulo dos dias a mais dos anos bissextos e no movimento da obliqüidade da eclítica (palavrinha complicada) terrestre. Vamos admitir que esses cientistas estejam errados e que a virada seja mesmo ao final deste ano. E daí?, Direi eu. O novo milênio pagará suas contas, enxugará suas lágrimas, melhorará sua saúde, aplacará sua solidão e manterá o seu trabalho? Portanto, cada um cuide de sua vidinha e trate de acabar com essa frescura de achar que um novo ano, século ou milênio mudará o seu destino. Isso é conversa de agente de viagem, vidente, cartomante, pai de santo, programas de televisão de segunda classe e os aproveitadores de sempre. Cuide-se não e espere pelo milagre e você estará ferrado. É o mesmo que esperar por promessa de político e governante. Papo furado.
Trate do seu dia a dia, vá vivendo a sua própria realidade e procure transformá-la com seu trabalho e suas forças. Sem essa de achar que as coisas caem do céu. A propósito, o Vaticano rendeu-se à ciência e admitiu que o paraíso celeste não fica no firmamento ou no espaço sideral. O paraíso é um lugar virtual, onde os virtuosos ressuscitarão um dia. Não vale mais dizer: Meu Deus do Céu. Deus está, como sempre esteve, em todas as partes e a matéria… Bem isso já é outra conversa.
É bom lembrar os versos de Geraldo Vandré: “Quem sabe faz a hora, não espera acontecer”. Diz um velho brocado americano: “ Todo aquele que espera que as coisas melhorem e não colabora com o tempo, verá, bem cedo, que aquele que não esperou estará tão longe que jamais será alcançado”. Ou com o fala um matuto conhecido: “Quem espera por tempo bom é vazante”.

João Soares Neto,
escritor
CRÔNICA PUBLICADA NO DIÁRIO DO NORDESTE EM 03/10/1999.